crônicas e Livros

PASSAGEM DE TÁXI –

Primeiro livro que escrevi nos EUA, onde gravei conversas e passagens, trabalhando como taxista em Miami, Flórida.

O Cruz era um americano/brasileiro (nunca soube exatamente onde ele tinha nascido) que, trabalhava com importação x exportação. Durante algum tempo dizia ser dono de um veleiro. Nos Estados Unidos aprendi a não perguntar muito sobre a vida particular de cada um. Se era dono do veleiro, se tinha um sócio, se simplesmente tomava conta…. nada disso importava. Os imigrantes vivem e acreditam as suas próprias ilusões. Melhor palavra encontrei em inglês para definir o dia a dia do imigrante: Dilusion. Eu, não poderia fugir à regra. Muitas vezes fui acometido por dilusions….
Morávamos na mesma rua em Miami, mais precisamente em North Bay Village, uma ilha super aconchegante com pequenas enseadas que facilitavam a atracação de lanchas, veleiros ou qualquer tipo de embarcação. Já havia passado pela minha fase de barco, quando por motivos óbvios, saí de uma cobertura na praia de Miami Beach para morar nesta ilha na Baía de Biscayne. Afinal, havia comprado um barco de 26 pés, com motor Mercruiser, 165 cavalos. Seria mais fácil mudar para uma casa a beira d’água. O mineiro Salles de Belo Horizonte, que para variar também trabalhava com importação e exportação, facilitou o pagamento do barco.
Passava longas horas ou até mesmo dias em alto mar, para esquecer a saída da Globo e a perda de um filho em New York…. o barco e as pescarias, iriam acelerar o processo da segunda separação.
Um ano depois, já sem barco (foi embora no divórcio) o Negro Cruz me convidou para um passeio em alto mar. Maravilha. Meu primo passava por Miami com a esposa e alguns amigos. O dia ensolarado indicava belas fotografias. Numa manhã de pouco vento, para garantir a velocidade, fomos e voltamos no motor. Final da tarde, na entrada do canal no Porto de Miami Beach, o motor começou a falhar. A gazolina estava acabando. Com o mar aparentemente calmo, sem vento, de repente sopra a primeira onda. O barco entrou meio na sorte pelo canal e começou a se aproximar das pedras. O vento aumentou… Senti uma coisa estranha. Frio e calor ao mesmo tempo, correndo pelas veias. A tal da adrenalina. Tinha certeza de que tudo iria funcionar bem. Pulei na água com uma corda, gritei para que eles se acalmassem e jogassem a âncora no meio do canal. Nadei até uma das margens e amarrei a corda numa pedra. Voltei nadando para o veleiro…Neste momento meu primo, que é psiquiatra em São Paulo, gritou que eu era louco, que não devia fazer aquilo. Mais tarde, ainda com a cabeça quente disse que eu vivia no fio da navalha e o pior, que eu sentia prazer naquilo tudo. Após a bronca e a análise (gratuita), o veleiro se aprumou e foi logo socorrido por um tow boat que passava naquele exato momento pelo canal.
Passei muitos anos pensando no desabafo do meu primo. No momento de maior perigo, falou (de verdade) o que pensava de mim. Afinal era um médico analista e deveria saber alguma coisa a respeito.
Lógico que, desde o livro The Razor’s Edge (O Fio da Navalha) de Somerset Maughn, que me identifiquei com o personagem Larry, um homem que saiu pelo mundo buscando aventura, o perigo, a verdade e a sabedoria. Desde o dia do primeiro casamento, minha mãe disse: não sei exatamente se ele é louco ou muito corajoso… E foi nesta mistura de coragem e loucura que vivi momentos incríveis nos Estados Unidos da América do Norte.
Após 4 casamentos, três filhos, 20 mudanças, mais de uma dúzia de profissões diferentes, nestes 30 anos de América (cheguei no dia 30 de junho de 1972) vivi intensamente momentos dos mais adversos, cheios de vida, perigosos, interessantes e algumas vezes felizes.
A primeira vez que dirigi um táxi era representante do jornal O Globo para os Estados Unidos. Com escritório em New York (Starlight Communications) e Miami, ganhando um bom salário e excelentes comissões, não havia qualquer sentido ser motorista de táxi. Os meus rendimentos giravam em torno dos dez mil dólares mensais, com muitas viagens e regalias….Um dia, lendo o Miami Herald vi um anúncio pedindo motorista para a empresa de táxi Diamond. Fiz um cursinho rápido de um dia (hoje demora uma semana) tirei a licença e lá fui eu trabalhar na Diamond. O terno pendurado no escritório do então famoso endereço da 141 NE Third Ave., era rapidamente trocado por um jeans, boné, óculos escuros e uma camisa florida do tipo Miami Vice.

MINHA VIDA NUM TÁXI

Começava às 4 da manhã. Às 4 da tarde devolvia o táxi. Regra número um dos motoristas: ganha dinheiro quem trabalhar melhor o rádio. Só que o dispatcher, gritava o tempo todo, sem ninguém, em sã consciência, entender absolutamente nada. Preferi fazer a minha primeira viagem com o rádio desligado, saindo do Aeroporto Internacional de Miami.
No estacionamento, mais de 800 carros se alinham em filas onde um alto falante canta qual é a fila da vez. Após duas horas de espera chamam a minha linha. O que estou fazendo aqui? Tenho que terminar a matéria da semana…. Todas as quintas-feiras no caderno de turismo do jornal O Globo enviava para o editor Fuad Atala (depois Moisés Fuks) uma série de anúncios com uma matéria sobre New York e Miami. “Na Rua 46 a Marca da Presença Brasileira” “Brasileiros Invadem Miami”…
Era talvez a única sucursal onde uma única pessoa fazia as matérias e vendia publicidade. Na espera do primeiro passageiro lembrei do tempo em que morava na Bahia. A sucursal do jornal O Globo ocupava um andar inteiro num edifício da cidade baixa. No lobby uma pequena recepção, num lado a redação, no outro a diretoria, contabilidade e publicidade. Os dois lados quase não se falavam. Na realidade, se odiavam. Os jornalistas que estudavam muito, liam muito, ganhavam um salário de fome. Os publicitários, que quase não tinham estudo, sempre com aqueles ternos caros, carros novos, comissões extraordinárias, dinheiro fácil…. Foi quando descobri que na vida não poderia ser somente uma coisa. No Brasil, ao criar a seção “Bahia um Estado de Espírito”, fazia as matérias e vendia a publicidade.
Line 16, Line 16… Paguei um dólar de taxa (aqui tudo se paga) e subi a rampa. No túnel, segui a linha até a parada em frente ao setor internacional. Só espero que não seja brasileiro…
Um jovem casal de paulistas com um papel na mão: Holiday Inn, em Miami Beach..
De boné, óculos escuros, com cara de hispano não havia despertado qualquer suspeita. Falo ou não falo que sou brasileiro? Subi em direção a Miami Beach.
– Benhê, eu acho que esse cara tá roubando a geinte. Olha lá a cidade, apontando para a direita.
– É mesmo benhê.
Eu calado, segui o mais rápido possível para o Hotel na praia. Na retirada das malas falei em português:
Não, eu não roubei vocês. Pelo contrário fiz o caminho mais curto e mais rápido.
Ele envergonhado, me deu uma gorjeta de 10 dólares. No caminho de volta passei pelo escritório. Fui pensando na fama que os motoristas de táxi conquistaram. Ladrões, aproveitadores.
Este não seria o meu emprego definitivo. Poderia voltar a dirigir táxi, a loucura poderia voltar….Mas não por enquanto. Deixei o carro parado em frente ao meu escritório, no táxi stand do Hotel Everglades. Ao chegar, os haitianos, em patoá, começaram a gritar uns nomes malucos. Acho que queriam me expulsar do lugar…Não dei importância. No elevador pensei: – E se alguém me ver? Como vou reagir? o que vou dizer?
O fio da navalha começava a cortar mais uma vez o espírito aventureiro, a minha vontade de conhecer coisas diferentes, a proximidade do perigo. A empresa Diamond era famosa por funcionar na região do centro da cidade e overtown, a zona mais perigosa da cidade. Lembrei de um filme com Donald Sutherland chamado The Gambler. O prazer e a loucura do jogador iam aumentando a cada momento do filme. Aliás, fico sempre pensando na relação da loucura. Ela não tem cura. É progressiva. A loucura não tem cura .
No final do filme, ele que era um jogador compulsivo, viciado, já endividado com toda família, com a esposa, com os amigos, entra num bar de bandidos e corta o próprio rosto olhando o sangue brotar pelo espelho…
Voltei ao aeroporto e esperei mais duas horas pelo próximo passageiro.

MIAMI TEM MUITOS CANAIS
PORQUE NÃO TEM MONTANHAS

O segundo passageiro foi outro brasileiro. Ele precisava encontrar um hotel barato e logo em seguida viajar para Lantana. Eu não sabia nada de preço. Quanto poderia cobrar por um dia? Sei lá… Falei 150 dólares o cara topou. Após conseguir com o Roberto Betchinger um bom preço no Hotel Paradise Inn, de Miami Beach, fomos para Lantana, uma cidade situada há 30 milhas ao norte de Miami. No caminho ele começou a falar que era vereador em Campos, Estado do Rio de Janeiro e que ia comprar uma draga para limpar os canais da região norte fluminense. Existia uma verba de governo já aprovada para este projeto. Super interessante.
Falamos sobre canais e eu joguei no ar uma teoria de que no sul da Flórida, acontecia um boom na construção civil porque os canais eram navegáveis. Em outras palavras: Miami tem muitos canais porque não tem montanhas. Lógico que era uma teoria confusa. A princípio o homem não entendeu. Nem eu sabia bem do que estava falando. Mas com o decorrer da conversa fui falando: – Os canais de Miami são profundos porque não existem montanhas, repeti. Ele, calado.
Naquela semana estava escrevendo uma matéria sobre St. Augustine, para o jornal O Globo. Ponce de Leon procurando a fonte da juventude conquistou a Flórida e na primeira cidade fundada nos Estados Unidos (St. Augustine) criou o Castelo de São Marcos, construído com uma substância chamada coquina, uma espécie de marisco misturado com areia do mar, que em seu estado líquido (quando imerso) era maleável, mas quando era retirado da água ficava mais sólido do que o cimento. Então, seguindo este raciocínio, como no sul da Flórida não existiam montanhas, o material de construção tinha que ser retirado do fundo dos canais, transformado-os sempre em navegáveis.
Ele perguntou o que eu fazia. Eu não podia dizer que era representante de um jornal do Brasil. Falei sobre diversas coisas. Sobre os diferentes trabalhos…Dos meus casamentos, dos filhos etc. Falei que conhecia bem a região de Campos, onde meu pai, quando era diretor de uma fábrica paulista de materiais elétricos me levava em suas viagens. A indústria vendia para todo o Rio de Janeiro, Espírito Santo e Minas Gerais. Desde cedo comecei a viajar com ele, principalmente para o norte fluminense onde tinha bons clientes. Conheci as maiores lojas e distribuidoras de material elétrico de Campos. Conhece fulano, conhece beltrano? e o tempo foi passando e ele esquecendo de me perguntar o que fazia além do taxi.
Chegamos à empresa que fabricava os tais botes. Eram máquinas enormes e pesadas. Aí perguntei: você não trouxe uma máquina fotográfica? Por que não tira umas fótos e faz igual no Brasil? A mão de obra é mais barata e você não tem que pagar o frete.
E assim foi feito. Pedi permissão ao dono da fábrica, ele tirou um montão de fotos. Meses depois me manda uma carta com registros das tais dragas fabricadas no Brasil.

O SONHO DO FUSQUINHA

Entreguei o carro às 4 da tarde. Dia seguinte resolvi entrar no rádio. Afinal, só havia pegado passageiros brasileiros. A minha esposa da época não acreditou no meu novo trabalho. Não é possível que você esteja dirigindo um táxi! O que vão dizer? Ela tinha, como a maioria das mulheres, a necessidade de mostrar um marido vitorioso e não um motorista de táxi. Dirigir táxi era feio. Só tinha gente pobre, fracassada…
Naquela época, um dos desejos que eu tinha era de comprar um volkswagen (que os americanos chamam de bettle) e ir pegar meus amigos brasileiros no aeroporto. Tudo era uma mistura de diversão e provocação para com algumas pessoas que tinham a constante necessidade de mostrar o seu status social. Nestes 30 anos de América, além políticos e pastores, conheci diversos traficantes, contrabandistas e ladrões. A maioria quando entrava numa parada grande, a primeira coisa que fazia era comprar um Mercedes Benz. Todas as vezes que algum exportador brasileiro era “roubado”, aparecia no outro dia com um belo e novo Mercedes. A história era mais ou menos assim:
O motorista do meu caminhão transportava uma carga indo para o aeroporto. Parou para almoçar e quando voltou, a carga havia sumido. Chamei a polícia fiz o report. Tenho tudo documentado. Estou arrasado.
Muitos, contando a história, até choravam. E a burrice era tanta que não esperavam nem pelo luto …., dois, três dias depois do roubo, o Mercedão novo na porta.
Os mais refinados, os que atuavam na Avenida Brickell (os famosos bandidos de colarinho branco) agiam exatamente da mesma forma. Primeiro golpe, Mercedes ou BMW novo. Era uma coisa meio padrão. E de muito mau gosto. Daí o meu sonho de comprar um volkswagen. Mas depois pensei no calor. Fusquinha, só com ar condicionado. Mas que seria uma grande onda com certeza seria. Muita gente voltaria para o Brasil dizendo, O Chico não está numa boa. Coitado…
Na época, não interessaria os meus carros na garagem do prédio numa belíssima cobertura de frente para o mar. Não interessa se o meu rendimento chegasse aos 10 mil dólares por mês. Interessa que estou dirigindo um fusquinha e que era motorista de táxi. A coisa do estereótipo. Nada contra a riqueza…
O advogado paulista Luis Gozzoli, é quem mais abomina esta história da raiva que os máus sucedidos têm das pessoas vitoriosas. Nós, católicos, carregamos esta coisa de que ser rico é pecado. Em diversas matérias eu alertei sobre esta coisa horrorosa que temos da auto-flagelação. Ser rico não é pecado. Viver bem, em boas casas, com belos carros, nada disto é pecado.
Mas o sonho de comprar um fusquinha ainda existe. Afinal foi o meu primeiro carro no Brasil e tenho saudades. Dá licença?

TEM BRASILEIRO, TÔ FORA

Enquanto o rádio não chamava para o próximo passageiro, lembrei do Benito Romero, um amigo que morava em New York. Um dos fundadores da comunidade de brasileiros nos Estados Unidos. Foi o homem que idealizou o primeiro jornal, a primeira agência de viagens (Brazilian American Society), o primeiro clube, as primeiras discotecas, bailes de carnaval. Passou mais de 30 anos sonhando em criar a Casa do Brasil.
As longas horas ao volante criam viagens incríveis na mente do motorista e, ainda pensando como era o tipo de brasileiro que habitava por estes lados, voltei para o início dos anos 70 quando fui almoçar com o Benito Romero e o Pelé, no Restaurante Brazilian Coffee. Na primeira reunião Pelé comprou a idéia do Benito:
– Vamos criar a Casa do Brasil!
No segundo almoço, ele já chegou meio cabisbaixo, dizendo que não iria dar certo:
– O Brasil é muito grande, heterogêneo… A gente não vai conseguir colocar o Lino Otho Bonn (na época diretor do Banco do Brasil) com o Alfaia (ex-jogador de futebol) jogando totó num clube em Manhattan.
Com o tempo fui amadurecendo esta análise de comportamento. O brasileiro que chega como gerente de um banco qualquer do Brasil, ou representando uma multinacional em New York, diz:
– Não vou na rua 46. Quero distância de brasileiros.
O brasileiro pobre, que sai de Valadares, trabalha duro, junta dinheiro, compra um belo carro, casa com piscina, vive em Long Island, diz:
– Eu não vou na rua 46, tem muito brasileiro…
Ele tem vergonha de encontrar os seus conterrâneos e lembrar de que um dia também foi pobre. Talvez por esta cultura eclética, tão cheia de diferenças, o sonho de Benito nunca tenha se realizado.
É bem verdade que noutro dia, em conversa com o Edilberto Mendes, editor do jornal The Brazilians, me confidenciou:
– Só existe um momento em que os brasileiros pobres e ricos se reúnem na América: Na festa do Sete de Setembro da rua 46, em New York.
O rico? ainda tenho as minhas dúvidas…

O rádio manda um pedido para ir a um hotel em Miami Beach. A executiva de New York precisava chegar no aeroporto de Ft. Lauderdale em menos de meia hora. Voei avançando sinais e não respeitando a velocidade. Ela não sabia como me agradecer. Me deu 20 dólares de gorjeta. Eu não tinha qualquer ligação com o dinheiro. Quis devolver….Não sabia exatamente o que estava fazendo ali. Com os 20 dólares na mão, pensei em parar, devolver o carro e voltar para o escritório. Não, hoje não vou aguentar mais um cocktail…. aquela gente da Câmara do Comércio, os aposentados do Consulado do Brasil – no Consulado deve existir uma cartilha onde os funcionários agem como se já estivessem aposentados e não precisam do emprego – Não existe a necessidade de se mostrar serviço. É só seguir a cartilha e tudo bem.
Melhor dirigir mais um pouco e descobrir mais coisas….

A ARMA

Após largar a passageira em Ft. Lauderdale segui para Coconut Grove. Os motoristas de táxi têm o direito de escolher a área de trabalho. Têm o direito de parar a qualquer momento. De tomar um café, conhecer um museu, ir a um cinema, teatro… Lógico que na prática não existe qualquer destas possibilidades. O dinheiro sempre fala mais alto. Além do mais, é necessário se pagar a diária. Seguir a regra básica de sobrevivência na América: Se não se trabalha, não se ganha. É como o sonho do brasileiro em ser motorista de caminhão nos Estados Unidos. Acaba quando ele descobre que todas as estradas são iguais, o relógio é implacável e não se tem tempo nem de ir ao banheiro. Qualquer parada na estrada representa um grande prejuízo. Ser motorista par conhecer lugares? Não…… No Brasil as estradas têm dinamismo, curvas, romance e folclore… Aqui é uma coisa estática, linear…No Brasil, nas paradas de caminhão, encontramos os melhores restaurantes. Aqui tudo é igual. Os mesmos hamburgueres….
Perto de uma marina peguei um passageiro que parecia perdido pela rua. Entrou rápido no táxi. Carregava um saco de papel, chamado brown bag. Pensei que era uma bebida. Os Estados Unidos, é um país de muitos contrastes. Um deles é a hipocrisia. A lei diz: Não se pode beber na rua. Mas, se envolver a bebida (garrafa ou latinha) num saquinho de papel está perdoado. Pensei que aquele hispano levasse uma garrafa de vinho…
Vamos rápido para a 37 e segunda avenida, em overtowm.
– Tá com pressa?
– Sim, se eu chegar mais tarde vão me perturbar e eu estou com medo de hoje matar alguém. E continuando a falar, tirou do saco uma arma.
– Você não vai me matar agora, vai?.
– Não, eu acabei de comprar esta arma para me defender. Os meus vizinhos me provocam todos os dias. Hoje eu preferi chegar mais cedo e não falar nada. Sou de New York e vivo aqui num inferno.
Lembrei do meu amigo Yaponam de Sousa. Um carioca de quase dois metros de altura, ex-jogador do Flamengo. Após jogar na Nicarágua, México e Costa Rica terminou a sua carreira como beque do Jersey Brazilians um time de Newark, New Jersey. O Ponam e a Angélica eram meus amigos desde os tempos do Brasil. Ela, ex-moradora do Jardim de Alah, no Rio de Janeiro, trabalhou como fisioterapeuta na clínica do Dr. Celio Cotechia médico do Flamengo. Aqui em Miami, o Ponam sempre me dizia,
– E aí Chico meu irmão, estes gringos falam de perigo, de overtown e o escambau… eles nunca subiram o Dona Marta, Jacarezinho… Isto aqui é um tremendo Jardim de Infância….
É, mas na hora do perigo não existe uma verdade absoluta. Nunca se sabe exatamente qual vai ser a reação de cada um. E elas podem variar de acordo com o dia e o momento. Anos depois eu passaria (também dirigindo um táxi) por uma situação de real perigo, onde após uma agressão, quase fui processado e preso.
O porto-riquenho pediu que eu entrasse na sua rua em overtown e desse duas voltas. Tudo poderia ser uma armação. Ele poderia estar planejando matar alguém, roubar alguém. Poderia estar procurando um drug dealer.. Até então eu não sabia que, se a polícia me parasse, eu também seria preso. A lei diz que em lugares perigosos, principalmente overtown, o motorista não pode esperar por qualquer passageiro. Lá tudo é possível acontecer. Mas naquele momento eu lembrava do Ponam. O que poderia ser mais perigoso do que o Dona Marta, Jacarezinho?
Saí de overtown recusando dois passageiros.
Não foram as notícias dos jornais estampando manchetes de alemães mortos na região, que me tiraram daquela vida no táxi. Foi o tempo. A personalidade de cada ser humano é moldada, com o tempo. E este tempo na América moldava uma nova personalidade que antes adormecida, começava a se desenvolver. Nesta constante auto análise lembrava sempre do amigo Fernando Medeiros que todas as vezes que me via, comentava sobre o filme “Little Big Man” (Pequeno Grande Homem), com Dustin Hoffman, uma história meio doida mostrando as diferentes fases de um personagem que durante um tempo foi índio, depois, após a fase religiosa virou vendedor de remédios numa diligência, foi pistoleiro, voltou a ser índio, virou bêbado, homem de negócios, virou soldado…. ele me achava meio como aquele personagem. A minha primeira fase de motorista de táxi estava acabando.

CHICA

No terceiro dia o corpo já começava a mostrar o cansaço. Muitas horas sentado, sem fazer uma digestão correta. Começava a entender porque os motoristas de caminhões, ônibus ou táxis eram todos barrigudos. Lembrei de um almoço que o Dino (Augusto Buisine) me convidara. Ele era meu amigo dos tempos de New Jersey. Mudou para Miami Beach e estava casado com uma russa. Além de eu ser padrinho de sua step daughter (enteada), era sempre convidado para uns almoços junto a comunidade russa. Nada melhor do que viajar para a Rússia dentro de Miami. A primeira vez que fui à sua casa conheci uns 8 ou 10 russos barrigudérrimos. A Lulu, esposa do Dino me pergunta:
– Chica do you want a vodca?
– Lógico que sim.
Pensei que iria agradar aos russos logo de cara. Peguei o meu copinho e brindei. Nenhum deles bebeu. Que estranho… de onde vêm estas enormes barrigas, perguntei à Lulu.
– Chica, eles são motoristas de táxi. Chica, os motoristas são barrigudos.
Depois da Lulu passei a entender porque os russos me chamavam de chica.
Sentamos à mesa e reparei que na frente de cada um havia um pequeno cálice. Continuei tomando a minha vodca com a desculpa de abrir o apetite. A comida chegou à mesa ao mesmo tempo em que as garrafas eram retiradas do congelador. A cada garfada eles se levantavam e brindavam; nasdarovia ou busdarovia, a versão russa do tim tim (saúde). Cinco horas depois ainda podia notar os dentes de ouro brilhando em enormes gargalhadas e eu, lógico, já falando um perfeito russo: nyet nyet, da da, cusha cusha, etc. Os motoristas de táxi russos dominavam uma região de Miami que mais tarde iria passar para as mãos de Alvino um mineiro de muitas histórias, muitos amigos e inimigos.

O NEGÃO E O FIO DA NAVALHA

Voltando para a empresa Diamond Táxi comecei a entender as regiões, as máfias dos haitianos, dos cubanos, dos russos e dos poucos americanos. Naquela época em 1983 ainda existiam alguns motoristas americanos que mais tarde seriam expulsos pelos haitianos.

No centro de Coconut Grove, um negro enorme com uma bengala do tipo cajado, entra no táxi e diz: nós vamos fazer uma diligência. Vamos rodar por aqui. Estou procurando uma pessoa. Eu fiquei espantado com o tamanho do cajado (todo trabalhado) e do negão. Não tinha cheiro de bebida, não fumava e a princípio não parecia drogado. Deve ser perigoso… Fiquei com medo. A voz era de comando, alta. O corpo caído para trás com os olhos fixos na janela.
– Don’t be afraid. I will pay you.
– É, mas agora está na hora de voltar. Tenho que entregar o carro para o dono e já estou atrazado.
– I told you, I will pay you.
E começamos a rodar. Ele só dava os comandos, vire aqui à esquerda, na segunda à direita. O frio na espinha… o fio da navalha…a cada curva entrava mais fundo no meio de um gueto com pessoas na rua, sentadas em caixotes. Todos com aqueles olhares de culpa, desconfiados.
– Vai mais devagar.
– Me perdoe mas eu tenho que devolver o carro. Vou dar mais uma volta e vamos parar.
– Não, você vai continuar.
Lembrei de um posto de gasolina próximo onde sempre havia um carro de polícia. Num movimento rápido segui para lá. Parei o carro, saí e disse:
– Me desculpe mas agora realmente eu tenho que ir. Daqui você pode conseguir um táxi melhor.
– Você está com medo de mim…
Naquele momento reparei em seus olhos vermelhos, uma coisa meio opaca, lembrei do Bocaiúva, um salva vidas de Ipanema no Rio de Janeiro, que nos anos 50,60 fumava grandes toras de maconha. Os olhos do negão vidrados. De repente setenciei:
– Entra aí, vamos dar mais uma volta. Se você não encontrar o que quer, eu tenho que ir embora.
Comecei a falar do Brasil, do Bocaiúva. Falei sobre a maconha no Brasil, em Palmeira dos Indios, nas Alagoas. Ele finalmente encontrou o que queria e eu saí correndo do gueto sentindo uma sensação de alívio, vitória, prazer e sei lá mais o que.
Voltei para o escritório, fiz as matérias para o Globo, devolvi o táxi, me despedi dos motoristas e segui estrada.

QUINZE ANOS DEPOIS

Depois do Globo, divorciei mais duas vezes, fundei o Florida Review, o primeiro jornal brasileiro da Flórida, o primeiro programa de rádio de Orlando (Alô Brasil), criei com o meu amigo Ary Rogerio (sobrinho do Maurício de Sousa) e a Adriana (sua esposa) o TELE BRASIL, o primeiro programa de TV em português da Flórida e ocupei diversas outras atividades. Durante estes anos repetia para os amigos: O segredo do sucesso é a continuidade….. e o tamanho do saco……
Depois de 4 casamentos já dava para se notar que eu não tinha muita paciência para a rotina. De saco cheio de tudo e de todos, voltei ao Brasil. Eu e milhares de pessoas. Tenho a opinião de que os imigrantes brasileiros passam a vida pensando em um dia voltar para o Brasil. E voltam. Muita gente vai de mudança com container (como eu), geladeira, televisão, motor de barco, gerador, ar condiconado, cortador de grama e mais um milhão de coisas desnecessárias. O tempo da mudança varia. Uns ficam 6 meses, outros, um ano… Dois anos depois (no máximo), 95% dos imigrantes brasileiros voltam para a América. Da próxima vez que mudar, tenho certeza que volto.
Vendi o jornal, fiz alguns investimentos no Brasil e fui morar num sítio. A idéia era de criar codornas. Os amigos que aqui ficaram diziam: – Agora ele pirou de vez.
Não criei as codornas, mas nasceu um ágil e saudável potrinho, poucos dias antes da minha mais bela criação: uma linda, meiga e inteligente menina que, mais uma vez, iria mudar o destino de minha vida.

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A VOLTA

De volta aos Estados Unidos, após uma longa trajetória por New York, New Jersey, Washington e Orlando, encontrei no centro de Miami, o Chico motorista.. Quase 20 anos depois, a vontade de dirigir…
– Por que você não procura o Alvino? Ele tem uma empresa chamada Brasil Taxi. Dá para tirar uns 500/ 600 dólares por semana. Mas cuidado, motorista de táxi é a pior escória da sociedade. Eu só não saio disto porque preciso de ter um horário flexível, levar as crianças ao colégio, meu filho à fisioterapia, etc…
Os tempos mudaram, a história mudou. Com a perda de entusiasmo no mercado brasileiro, vi uma possibilidade de coordenar um programa de TV e voltar a dirigir um táxi.
O programa “Chico Moura na Madrugada” reunia 4 personagens à volta de uma mesa para falar sobre as experiências vividas em cada atividade. Numa semana reunia 4 chefs de cozinha, na outra, 4 gerentes de companhias aéreas, 4 empresários, 4 donos de restaurantes, e assim por diante. Nos intervalos poderia voltar a dirigir.

EU GOZO NO BRASIL

Voltei com a empresa Miami Dade Taxi. Antes de procurar o Alvino, fui direto para South Beach. Era uma região que havia mudado consideravelmente. Comecei dirigindo uma Van no horário de 4 da tarde às 4 da manhã. Na esquina da Jefferson com a rua onze, um jovem fez um sinal. Parei, ele entrou e disse:
– Vamos para a 62 e a Collins. De onde você é ?
– Do Brasil.
– Ai, ai, ai, Brasil, acabei de voltar de São Paulo. Fui gravar um disco. Sou cantor em Santo Domingo e amo o Brasil. Eu gozo, eu gozo no Brasil… Eu gozo no Brasil. Vamos voltar para onde você me pegou. Você vai parar por uns 3 minutos eu te dou uma boa gorjeta e aí continuamos.
Vinte anos atrás, South Beach era o paraízo dos drug dealers, marielitos que roubavam os velinhos. Tinham este nome porque saíram da praia de Mariel, em Cuba. Foi uma grande jogada do Fidel Castro. Esvaziou os presídios e hospícios do país, dizendo que estava mandando os presos políticos para Miami. Jimmy Carter fez uma tremenda onda, direitos humanos… sejam bem vindos os heróis da revolução…. Foi quando os ladrões, loucos e drogados chegaram à Flórida e invadiram South Beach. Preso político, nenhum….Mais tarde Jimmy Carter receberia o Prêmio Nobel da Paz.
Antes da chegada dos Marielitos, South Beach era um paraízo. Na praia, povoada por americanos, tive o prazer de conviver com uma garotada que pegava onda no pier da rua dois. Pouquíssimos brasileiros frequentavam aquela região. O Carlão (mais tarde dono da revista Miami Alegria), o Pedrinho, Gregório, o José Luis Volpato, o falecido Johny (americano criado em copacabana), o ipanemense Fernando Medeiros, e outros… Em 1983, fomos os precurssores do frescobol na praia. Com aquelas raquetes pesadas, importadas de Ipanema, vivíamos às voltas com a polícia. Naquele tempo era proibido a prática de um esporte tão violento.
Quando em 1988/89, a região foi tombada pelo patrimônio histórico como distrito Art Deco, os drogados (os pobres) e os velinhos sumiram.
Muitos anos depois, encontro-me num táxi esperando o meu primeiro passageiro, um cantor homossexual que ficou tão feliz por eu ser brasileiro, que voltou para pegar mais droga.
Enquanto esperava, lembrei de South Beach e no progresso da região. Acabaram com a pobreza mas não acabaram com a droga. Mudou a sofisticação. Os aviões (pequenos traficantes) não são mais os mesmos. Trocaram as bicicletas pelas mopeds Os mercadinhos dos marielitos que vendiam droga para a população agora se escondiam em pequenos apartamentos (studios) nos alleys de Miami Beach.
Viajei para a nossa praia e lembrei da catarinense Gina Eckerman (adepta do Guru Maharajii, virou Jeena Jaa) era a nossa Leila Diniz, com fantásticos biquines, desafiava a polícia fazendo top less e chamando os policiais de bichas. Os corpos monumentais de Georgia e Isabella (filhas de Dona Helena do Consulado do Brasil), Ilka, a minha namoradinha filha de Tchecos, Fernandinha Quinderé, Luciana Malheiros e Ninon… Os americanos, Tuxedo, Michael (Sea Weed), Lindy, mãe de Jesse, Derick, Sebastian.
O cantor volta ao carro sem dizer palavra. Senta no banco trazeiro e desmaia. Olho pelo retrovisor. Ele morreu, pensei. Saí do carro dei a volta, abri a porta e comecei a dar tapinhas na cara do morto. Nada. Seria uma parada cardíaca? Era só o que faltava. O meu primeiro passageiro, e morre dentro do carro. Pra que fui inventar esta história de voltar a dirigir táxi? Onde estou com a cabeça? Já é noite. Não vou conseguir passageiros por aqui. Vai chegar a polícia, vou ter que ser testemunha. Não vou conseguir pagar a diária. Um milhão de desgraças passaram pela mente.
O cantor deu um grande suspiro e disse:
– Vamos rápido.
Começou a falar sem parar. A princípio dizia coisas sem nexo. Depois continuou:
– Eu gozo no Brasil. Eu sou apaixonado pelo Brasil. Lá tive grandes amores. Eu gozo no Brasil, eu gozo no Brazil….
Quanto mais falava, mais viado ficava.
– Me perdoe pelo susto que causei. Gastei todo o meu dinheiro. A pessoa me enganou. Vou ter que subir e pegar um trôco na minha casa. Você pode esperar aqui em baixo? Sou um cantor, um profissional. Não sou vagabundo.
– Só não posso esperar muito tempo.
– Se você me der o telefone de um brasileiro qualquer e que eu possa conversar, eu volto e te dou 50 dólares.
– Não posso esperar muito tempo.
– Por favor estou morrendo de saudades do Brasil. Eu gozo no Brasil, me dá um número qualquer, eu gozo no Brasil, eu gozo no Brasil.
Naquele momento a cocaína estava começando a fazer efeito na língua. Ele não parava de se morder e de fazer caretas. Mas mesmo dopado, via-se que realmente não era um mau sujeito, só estava meio doido.
Para conversar com este louco só existe uma super cabeça em Miami. A mais louca de todas, a mais inteligente e rápida, a pessoa que ninguém jamais conseguiu decifrar a esquizofrenia: Gerson Delano de Weissheimer.
Como sabia de cabeça o seu telefone, ele anotou e subiu. Passados uns 10 minutos voltou com o dinheiro da corrida e mais os 50 dólares.
Dei a volta pela rampa de sua casa e fui encontrar com os motoristas brasileiros. Sabia mais ou menos onde se reuniam. Em frente ao hotel Cadilac, na época de propriedade da paulista Cristiane Boumeni. E se ela me visse? nunca mais faria qualquer anúncio no jornal….

O PATROCÍNIO

Ao iniciar o programa de TV, teria que voltar a dirigir à noite. Se algum patrocinador me visse dirigindo um táxi, retiraria imediatamente o patrocínio. Passei a vida escutando de alguns brasileiros a seguinte frase:
– Chico, quem tem o poder de decisão não faz negócio com gente fraca. Motorista de táxi é feio, denota uma derrota profissional. Ainda mais você, que já fez tanta coisa boa. Dirigir táxi pega mal.
De tanto escutar os amigos comecei a me preocupar com a imagem.
As pessoas não fazem negócios com gente fraca…
Ainda pensando sobre esta frase, me dirijo ao ponto de táxi em frente ao Porcão, mais extatamente em frente à sede de meu antigo jornal. Recebo uma chamada pelo rádio;
– Carro 32, carro 32 vai para a esquina da Brickell com a rua 12.
Lá chegando o dispatcher dá o endereço e subo a rampa do Imperial House, um luxuoso prédio na avenida mais chique e cara de Miami.
O passageiro estaria esperando já na portaria.
Ao chegar nem notei se era alto, gordo, preto ou branco. Ele entrou e pediu:
– Aeroporto!
Quando virei para trás, quem era? O Flavio Carvalho, diretor da Transbrasil nos Estados Unidos.
– Chico!
E deu uma gargalhada. Não acredito… O que você está fazendo aí? Alguma matéria?
– Não, é uma mistura de necessidade, aventura e loucura mesmo.
– Tudo bem….
E começou a falar sobre a Transbrasil, que estava morando em Miami e trabalhando em São Paulo. Ele chegava no aeroporto de Guarulhos, ia para Congonhas, mudava de roupa, seguia para uma reunião às 7:30 da manhã de segunda-feira e depois para seu escritório. Na quinta-feira de manhã pegava o avião para Miami, ia direto para o escritório, trabalhava na sexta, fim de semana com a família e domingo à noite de volta para São Paulo.
– Pode vir todos os domingos a esta mesma hora…
Saí dalí pensando como seria diferente se eu tivesse encontrado o Flávio num almoço da Câmara de Comércio, numa praia em Key Biscayne ou num torneio de tênis…. Com certeza iria me dar um patrocínio de passagens ao Brasil. O programa de televisão, “Chico Moura na Madrugada” se arrastava, sempre à mercê dos editores que cobravam um preço irreal para o universo brasileiro.
Um dia, o Luis Ernesto Gozzoli me disse:
– Chico, ontem estive com o Flávio Carvalho na Câmara do Comércio. Na roda rolou o seu nome e as pessoas comentaram de que você estava dirigindo um táxi. O Flávio foi de cara falando que achava muito digno de sua parte dirigir táxi.
– O Chico Moura é uma pessoa de muita dignidade. Melhor que roubar, armar esquemas corruptos, etc.
Dia seguinte liguei para o seu celular em São Paulo e a partir desta data, a Transbrasil passou a ser o maior patrocinador do programa. Era uma passagem por semana.
Dignidade era uma palavra comum. Não era porque era motorista de táxi que tinha dignidade.

BRAZIL TAXI

Liguei para o Alvino. Sandra sua mulher, é quem atendia os telefones da Brazil Taxi. Repassou o celular do marido que na mesma hora me colocou na linha.
A Brazil Taxi era uma empresa fantasma idealizada e criada por Alvino, um mineiro de Valadares que chegou na hora certa no lugar certo. Montou um esquema de controlar um grupo de motoristas na praia de Miami Beach. De sua casa a esposa recebia as chamadas dos gerentes, porteiros, guardadores de carros dos hotéis e edifícios de Miami Beach. A cada semana era feita uma reunião na casa do Alvino que cobrava uma taxa de cada motorista para participar da famosa folha. Era distribuída uma lista dos hotéis (cada um com seu número em código) associados à sua empresa. Por exemplo, numa semana o Hotel Di Lido tinha o número 652, na semana seguinte o Hotel Atlantic era o numero 864. De seu carro, Alvino controlava todos os motoristas. Usava beeper, rádio, telefone celular e estava 24 horas ligado. O grupo era dividido em 4 zonas: Da Rua um até a nove, tinha o nome de apoíssimo. Da nove até a Lincoln (17) era a área de apoio, da 17 até a 24 era a área um, da rua 24 até a rua 67 a área dois, da 67 para cima era a área 3.
Em cada zona o motorista tinha que cantar a sua chegada e era colocado numa lista de chamada. Era permitido se pegar passageiros dentro da área (sem ser pelo rádio) mas o motorista muitas vezes perdia a vez. Lógico que as malandragens existiam e Alvino as conhecia de sobra. Ele gostava muito de filosofar no rádio, dando lições de moral aos seus motoristas. Logo na primeira semana ele me disse para ir “baixando” até a Lincoln Road. Baixar quer dizer que eu estava no posto dois e deveria ir para a zona um. Fui pela Alton Road (uma rua de dentro) que cortava caminho. Ele me liga de novo perguntando onde eu estava. Aí me dá uma bronca porque eu deveria ter ido por outra rua. Expliquei que seria melhor por dentro, mais rápido, menos trânsito. Ele disse que na Brasil Taxi eu tinha que fazer o que ele queria.
A minha vida no Táxi estava a partir daquele momento nas mãos do comandante Alvino. Ora, se estava alí pela liberdade, pela necessidade da aventura, pelo delírio do perigo misturado à curisosidade, por que raios tenho que escutar aquele bull shit todo? Mas fiz extamente o contrário. Dei corda para ele pensar que eu era realmente um novato, um ilegal, que não sabia falar inglês. Respondi com humildade e ele cresceu. Foi realmente uma experiência divertida. Dia seguinte quando comecei o dia e liguei o rádio escutei o seguinte diálogo:
– ôce tem que entender que ocê num estudô. Se tivesse estudado não seria motorista de táxi, seria um doutô. Aqui na minha empresa ocê tem que fazer o que eu tô mandando.
Era o Alvino, já cedo, dando bronca em alguém. Disse-me o mineiro Fernando Gino que ele havia feito fortuna com a Brazil Táxi, comprou casa própria em Miami e em Minas Gerais. Com mais de 50 motoristas, Alvino criaria um monstro que mais tarde iria se voltar contra ele. Alguns de seus funcionários criaram outras empresas de táxis piratas e assim sucessivamente. Hoje calcula-se que mais de 200 motoristas de táxi brasileiros trabalham na região de Miami Beach.
Os motoristas da Brazil Táxi pagavam aos porteiros dos hotéis 7 dólares de comissão por cada passageiro. Uma corrida de Miami Beach ao aeroporto era cobrada uma taxa fixa de 24 dólares. Menos sete de comissão, cada motorista ganhava 17 dólares. Parecia pouco, mas com o interesse dos porteiros e dos valet (manobreiros), os hotéis não paravam de chamar. Nas corridas maiores, a comissão dos porteiros aumentava. Tudo funcionava como no jogo do bicho. O segredo da malandragem era ser honesto com os porteiros. Se alguém pisasse na bola era crucificado pelo grupo que se policiava a cada chamada.
Por exemplo, se eu estivesse na Lincoln Road e fosse o primeiro da linha, o cantador dizia: – Área dois, área dois, carro 26, corrida do 672 para um. Parquear com Jonathan. Em outras palavras: O primeiro da linha na área dois (o carro 26) deveria se dirigir ao hotel Cardozo (código 672) e pagar (parquear) sete dólares (num envelope fechado) ao Jonathan e levar o passageiro para o aeroporto (um).
O motorista responde:
– 26 cópia caminho para 672.
Neste momento ele olha rápido na lista (que é mudada todas as semanas) qual hotel é o 672.
Ao chegar na porta do hotel Cardozo diz pelo microfone:
– 26 located.
O motorista chega na porta do hotel e pergunta:
– Quem é Jonathan?
O Jonathan põe o envelope rápido do bolso e diz para esperar um pouco que o passageiro do 301 está descendo, mas que já pode começar a levar as malas, para garantir a viagem… Os códigos são usados para não acontecer roubos de serviço. Muitas empresas piratas da praia de Miami Beach usam até hoje esta modalidade de suborno para levar passageiros para o aeroporto.
Com o passageiro já dentro do carro diz :
– 26 completo para o número Um.
O número um é o código do Aeroporto Internacional de Miami. O Porto tem o código dois e o Aeroporto de Ft. Lauderdale, o código 3….
Muitos motoristas começaram a sua vida profissional com a ajuda do Alvino. O carioca Tarzan (ex sócio do Alvino) criou a Rio Táxi. Depois virou uma mistura de corretor de imóveis, com motorista de táxi. Hoje, pode comandar a sua empresa sem sair de casa.

O CLICK

Numa destas madrugadas desci a Pensylvania Ave., em Miami Beach, na direção do restaurante Tantra, onde trabalhava o Beto, meu filho. Já eram três horas da manhã, uma noite fraca, cinzenta, abafada…. Ao chegar a um cruzamento, dei uma parada num stop sign e de repente, entram três passageiros. Um na frente e dois atrás. Foi tão rápido que nem deu tempo de recusar. Eu ainda disse:
– Tenho que apanhar meu filho no trabalho.
– Você primeiro vai dar uma corrida até downtwon.
Quando às três horas da manhã, um passageiro pede para ir a downtown, com certeza quer ir a overtown buscar droga.
– Vocês querem ir exatamente onde em downtown?
Só ouvi o click de uma arma no banco de trás. Senti um calafrio. Me sentia como um gato encurralado, na frente de um doberman assassino. Naquele exato momento entrei na rua 5 em direção à ponte que levaria ao centro de cidade. No posto de gazolina da Jefferson, um carro de polícia estacionado, entrei falando mais alto:
– O carro está com problema….tenho que entrar aqui correndo.
Fiz a curva e parei. A minha voz começou a aumentar conforme eu saía do carro, correndo e gritando, que eles poderiam procurar outro carro porque o meu deu prego.
– Aqui tem um carro de polícia…
E saí correndo na direção da polícia.
– Police, police!!!
Eles voaram. Pareciam três foguetes. Corrí até o carro da polícia e disse mais ou menos como eles eram, que estavam armados e que iam me assaltar ou me matar. Após o rádio, o policial ligou as luzes, a sirena e saiu em busca dos bandidos. Eu corri para o táxi, dei a volta e segui para casa correndo. Na mesma noite encontrei três balas calibre 22, no chão do carro. As balas calibre 22 são aquelas que fazem um grande estrago no corpo e que provocam hemorragias. Se eles fossem presos, perderia mais uma dia. Identificação na polícia, testemunha… e isto sem falar no perigo da vingança. Cheguei em casa, e ainda tremendo do susto demorei muito a dormir.

WHITE PARTY

Dias depois era a famosa festa gay “White Party”. Viados de todo o mundo se reuniam para uma convenção. Nunca encontrava tempo para conversar com os gays e perguntar como funcionava a convenção. Eles sempre andavam em bandos e sempre fofocando sobre a vida alheia. Ainda sem conhecer o Alvino pessoalmente, fui pegar uns passageiros de Miami Beach para o Palácio de Viscaya (a cada ano acontecia num lugar diferente) Cantei a saída e segui, No meio do caminho um dos gays liga do celular para um amigo e resolve mudar o itinerário.
– Pensando bem é melhor a gente ir para a Hibiscus Island. De lá a Mary Lou nos leva.
Entrei na Hibiscus Island e voltei para a praia. Cantei pelo rádio a minha posição e o Alvino disse que eu havia mentido. Lógico que partir daí foi a minha última viagem. A pior ofensa para mim sempre foi a de alguém me chamar de mentiroso. Muito tempo depois entendi quem era o Alvino, a sua longa história. Mas de fato eu não estava ali para discutir, para me desentender seja lá com quem. Estava alí para me divertir.
Voltei a trabalhar por conta própria no aeroporto. Com o tempo o motorista vai se aprendendo os macetes da profissão, onde se pinta um carro mais barato, o melhor mecânico…A sorte das corridas grandes. Aí fui fazendo uma analogia entre os motoristas de táxi, os vendedores de automóveis, os corretores de imóveis, os pescadores e os viciados em jogos de azar. Ao chegar a sua vez, o motorista olha para o passageiro e imagina o destino. Será que aquela família vai para Fort Lauderdale? Será que vai para Coral Gables? As corridas para Hialeah eram odiadas. As melhores como Boca Raton e West Palm Beach garantiam o dia. Era como fazer um Four ou Street Flash. O Royal Street Flash era Orlando ou Key West. Os passageiros eram como os peixes. Podia-se pegar uma garoupa, uma cavala ou um bagre.
No táxi começo a fazer a minha auto-análise e a compreender melhor o ser humano. Os passageiros entram e eu vou logo perguntando tudo. Quando eu entrava num táxi – desde muito jovem, ainda no Brasil – perguntava tudo ao motorista:
– Quantas horas você trabalha? É casado? Dá para tirar quanto por mês? Já foi assaltado? Sentiu medo? Já dormiu na direção? Já achou muita coisa no táxi? Dá para transar?
Como motorista eu não podia esperar que eles me perguntassem tudo isto. Eu é que sou o repórter. Aqui quem faz as perguntas sou eu. Passei a encarar o táxi como a minha internet humana, mais direta, rápida. Velocidade na temperatura mundial. Chegou de Roma? Como está o clima? O que está rolando na política, a opinião de cada um….

A MINHA ASCENDÊNCIA TURCA

Nos diálogos comecei a treinar o domínio do assunto. Eu fazia as perguntas.
– Vem de onde?
– De Istambul.
– Férias?
– É.
– O meu bisavô também era turco. Foi para o Brasil muito cedo. Acho que era muçulmano.
Pensei, todo turco deve ser muçulmano. Não gosta de judeu. A gorjeta vai ser melhor e fico sabendo mais sobre Istambul.
– Nós somos judeus.
Não podia falar mais nada. Esperei até o final da corrida. Deveria advinhar. Se eles estavam indo para a região da rua 41, em Miami Beach não poderia ser muçulmano. Da rua 31 até a 57 em Miami Beach, é um verdadeiro kibutz. Mas na minha cabeça, como um turco poderia ser judeu?
Voltei para o aeroporto sem qualquer tipo de gorjeta e me sentindo um idiota. Fiz uma pequena corrida para uma senhora que queria ir para Hialeah. Nervosa, apertava o dinheiro na mão como se ele fosse fugir. Eu disse:
– Relaxe. Se o dinheiro não der, não tem importância. Eu cubro.
Na terceira corrida outra família de Istambul.
– Que incrível, já é a segunda vez hoje que pego gente de Istambul.
– E não vai parar por aí. Estamos em férias e os aviões estão lotados.
Não perdendo tempo voltei com a mesma conversa:
– É, meu bisavô era de Istambul. Era judeu.
– Nós somos muçulmanos.
– Na realidade, não sei se ele era muçulmano ou judeu. Eu me lembro muito pouco dele… sei que Istambul ficava na antiga Constantinopla.
Voltei sem gorjeta.
Após outra corrida para Coral Gables, peguei um indiano para o sul de Miami. As malas novas, a pasta Loius Vuitton e o sobretudo de lã azul marinho escuro já anunciavam uma boa gorjeta. Começamos a conversar e eu num inglês britânico não perdi tempo:
– Indiano?
– Sim, de Goa.
Aí eu perguntei? Por que os melhores engenheiros de informática são indianos?
– Como você sabe que eu sou engenheiro?
– Eu não sei. Sei que deve falar português.
O homem ficou louco. Parecia uma coisa do outro mundo. Saber que em Goa se fala português. Mais ou menos na mesma época do descobrimento do Brasil os portugueses conquistaram Goa (1510). O português dele ainda era melhor, porque uma ou duas vezes por ano, como diretor de uma das maiores empresas de informática do mundo, responsável pela América Latina, viajava ao Brasil, país que apresentava o maior lucro para a sua empresa.
Um amigo, custeou a sua ida para Inglaterra e lá cursou a faculdade de engenharia. Voltou para a Índia, terminou os estudos, fez pós-graduação e depois doutorado na Inglaterra. Perguntei porque não nos Estados Unidos. Me disse que não havia conseguido o dinheiro suficiente para estudar numa universidade americana. Na Inglaterra (para ele) as bolsas eram mais fáceis.
Após uma longa conversa na porta de sua casa, me convidou para entrar e tomar um chá. Me apresentou à esposa, filhas e saí dalí com uma grande sensação de bem estar, de ter encontrado uma pessoa culta, sem barreiras sociais, econômicas, uma pessoa liberta. Um homem fantástico.
De South Miami voltei pela US-1 ouvindo o programa da Gina Martell, uma americana (com avó brasileira) que criou um excelente programa de rádio chamado “Brazilian Love Jazz”, na Love 94. A boa música brasileira. O orgulho maior de uma fase musical – única no Brasil. O maior orgulho dos brasileiros no exterior. Nem o futebol era tão importante no mundo como a música de Tom e Vinicius.
Lembrei do Alan Kobrin, o primeiro judeu americano a criar em Miami um programa de rádio com música brasileira. Nos anos 70 foi para o Brasil num programa do “Peace Corps”, conheceu uma baiana, casou , teve um filho e voltou para os Estados Unidos. Na volta me disse:
– Chico, acho que fiquei muito tempo no Brasil e não consigo me acostumar ao sistema daqui. Será possível?
– Lógico que é possível. Eu não gosto muito daqui e não consigo mais viver no Brasil. Basta você alugar o filme “Bread & Chocolate” para entender melhor este sentimento….
Nesta mesma noite, já em South Beach, na rua dois, onde existem boas discotecas peguei três árabes, com cheiro de árabe, pinta de árabe, falando árabe. Agora não pode dar errado. Falei de novo:
– Meu avô era turco.
O mais agitado, bêbado, falou:
– Nós somos curdos e odiamos os turcos. Se eu encontrar um pela minha frente, mato com estas mãos que você está vendo aqui.
Passei o resto da noite calado sem perguntar mais nada a ninguém.

TELEPROMPTER

A cada passageiro uma história, um mundo novo. No Hotel Lowes, peguei uma passageira que era especializada em realizar palestras e treinamento para pessoas que liam em tele prompters.
Uma vez, num discurso de um político no Hotel Fontainebleau fiquei impressionado com a performance do candidato. Na América não existe discursos de improviso, criação de texto. Tá tudo na telinha. Tem-se que saber ler com desenvoltura. O melhor político é o melhor artista. Não existe espaço para erros. Tudo é teleguiado, tudo é dirigido. Os discursos não são de improviso. Enormes teleprompters invisíveis orientam os candidatos. O público não vê os letreiros…
A passageira viajava por todo o país ensinando como usar, como instalar e como ler as fibras óticas (invisíveis). Gerentes, palestrantes, seminaristas, locutores de televisão….. Ela era casada e adorava acampar, pescar e vida ao ar livre. A maior parte do tempo passava num avião ou num seminário ensinando como instalar e discursar com um teleprompter.
– Adoro acampar, mas infelizmente na minha vida, eu perdi a liberdade.
As afirmações não podem ser eternas. Ela perdeu a liberdade momentaneamente. O mundo dá voltas. Liguei o rádio e lembrei do jornalista Roberto de Sousa. Fomos contemporâneos no jornal O Globo. Após viver alguns anos em Miami, e entre alguns jornais e revistas, Roberto criou em Orlando o BDN, um fax letter diário.
Quando trabalhou para uma loja, na International Drive, viajava quase que todas as semanas para Miami. No caminho escutava a Clássica 92, uma rádio cubana que tocava músicas dos anos 60/70. Todas as vezes que eu me encontrava com o Roberto ele dizia:
– A clássica 92 é sensacional!! Nas minhas viagens vou e volto escutando os sucessos do passado.
Na época eu pensava: – que rádio cafona, só toca música hispana, chata…
Passsados alguns anos, me vejo dirigindo um táxi, sintonizando a clássica 92 e gostando dos boleros, merengues e salsas. A estação não tocava só música cubana, os melhores clássicos americanos, brasileiros….
Não deu tempo de contar esta história para a americana que dizia: ….Por causa do trabalho, perdi a liberdade….
O mundo dá voltas e não sabemos absolutamente nada do que vai acontecer. Eu, escutando música cubana???

A BEBIDA, AS CADELAS E O ÊXTASE

As mulheres americanas são realmente extremamente independentes. A relação com a bebida aumenta terrivelmente o fator de mudança de personalidade. Impressionante como são sensíveis ao álcool. Pela suposta liberdade, o sexo não deveria ser de tanta promiscuidade. Em outras palavras no terceiro copo, as mulheres americanas deixam qualquer cachorro de rua, fazer suas gracinhas.
Numa das pescarias solitárias na porta de minha casa, vi uma senhora gorda, bonita, de longos cabelos brancos. Ela veio me perguntar qual o tipo de peixe que se pesca e todas aquelas perguntas chatas que não se deve fazer a um pescador solitário. Começou falando em inglês. Depois disse que era argentina. No início, a conversa ficou meio rotulada e eu fiquei meio na defensiva. Ela começou a falar de suas viagens pelo mundo, do restaurante que tinha em South Beach, e de repente fui esquecendo que era argentina. Ela também deve ter esquecido que eu era brasileiro e ficamos relativamente amigos. Falei que havia passado uma temporada na Europa e muito me impresionara em Madrid, o preço de um litro de whisky que comprei no Super Mercado Carrefour.
– Paguei 7 Euros num litro de Grants. Quando fui a uma discoteca paguei 9 Euros por uma garrafinha de água. Não é estranho?
Esta senhora que foi dona de um restaurante me disse:
– É por causa do êxtase.
– O quê?
– É… é isto mesmo. Hoje todo mundo em South Beach toma êxtase. E como dá muita sede, a água ficou mais cara do que o uisque.
Inacreditável, mas a grande maioria dos passageiros que eu transportava em South Beach carregava uma garrafinha com água. Eu pensava: que maravilha. Isto é que é uma garotada saudável, cheia de vida, alegre e extremamente amorosa.
O êxtase dá uma enorme sede e destrói as células do cérebro. Em poucos anos transforma as pessoas em verdadeiros animais, com mentes embotadas, agressivos, desmemoriados.

Um dia, em frente a uma discoteca de South Beach entrou uma jovem, bonita, com porte elegante e educado. Pediu para ir a Ilha Di Lido, no Venetian Causeway. No meio do caminho ela me diz:
– Você está indo na direção errada.
– Não, este é o melhor e único caminho. Não existe outro.
– Me perdoe, acho que colocaram alguma coisa na minha bebida. Estou me sentindo muito estranha.
– Você sabe o que foi?
– Não, acho que foi êxtase. Não sei. Só tomei dois copos de champanhe que um amigo me deu. Quando comecei a me sentir mal, saí sem falar nada com ninguém. O meu endereço é este…..
E me passou a carteira de motorista. Logo depois disse que eu estava rodando e que ia me aproveitar dela. Que ela era uma boa pessoa.
E se fosse burudanga? No restaurante Steak Masters, conheci um colombiano que me falou da tal burudanga, Disse-me que era uma espécie de pó que se ingerido, as pessoas ficavanm sendo completamente dominadas pela outra. “até a chave do cofre a pessoa dá”….
E a mulher era linda…..
– Vamos fazer uma coisa: Quando chegar em sua casa, vamos chamar seu pai e sua mãe para te ajudar.
– Ok.
Bati na porta e os jovens pais chegaram apavorados. Expliquei o que havia se passado e eles entraram. Pensei na minha filha e como eu iria lidar com isto no futuro. Por mais experiência de vida que se tenha, é uma coisa que está na nossa cara e que tem que ser muito bem administrada.
Na porta do Hotel Fontainebleau o porteiro chama dois carros de uma vez.
É um grupo grande e precisamos de duas Vans.
Na confusão, na pressa, o grupo se dividiu e alguns casais se separaram. Todos levavam um grande copo na mão com uns abacaxis, cerejas e uma pequena sombrinha colorida. Impossível em South Beach dizer que a polícia vai proibir bebidas dentro do carro. Todo mundo bebe o tempo todo. Na minha Van entraram quatro mulheres e três homens. Uma delas, loura com os peitos meio de fora, acabou sentando no colo do seu chefe, um dos palestrantes de um congresso de médicos e pessoas ligadas a hospitais. A loura completamente embriagada soprava no meu ouvido um ar quente e provocador. E começou a falar;
– O que eu vou contar fica aqui. E dava adeuzinhos para o marido que ia no outro carro.
-Vocês prometem que não vão contar para o meu marido? Quem tá ligado na internet? uma das coisas que mais está me agradando é quando eu começo a me masturbar na telinha. Tenho um amigo nas Filipinas que se masturba todos os dias comigo. O meu marido dorme, as crianças dormem e aí a noite é toda do Filipino.
A cada final de frase ela soprava no meu ouvido. A que sentou ao meu lado ficava me observando para ver se eu tinha alguma reação. O que eu deveria fazer? Parar e dar um beijo cinematográfico em sua boca? Sorrir? Passar a mão em suas pernas e entrar na onda? Não tinha a mínima idéia do que deveria fazer.
– Que coisa dura é esta?
De repente o chefe diz que está ficando excitado. Será que eu estou escutando direito? O marido no outro carro, a mulher sentada se esfregando com o chefe e mandando beijinhos para o marido… Todos embriagados fazendo uma suruba no carro. O que eu devo fazer?
Pensei que era um grupo diferente, que não era possível acontecer isto. Afinal são pessoas civilizadas, educadas, cultas, são médicos, não podem estar vivendo esta situação aqui agora. Bacanal deve ser para gente jovem, drogada…
Não, eram mulheres americanas beirando os 40 anos. Elas não podiam ver bebida. Em muitas e muitas corridas, pude registrar como se transformam… loucas, devassas… não importa a cor, o tamanho, o dinheiro a beleza ou a feiura humana, nada. Qualquer um que chegue perto leva. E parece que quanto mais bonitas e mais ricas, mais devassas.

OS DESEJOS

Uma vez, numa conversa de final de noite com outros dois motoristas rolou o seguinte papo:
– Você já comeu alguém?
– Lógico que sim.
– E você?
– Eu não…
Um outro motorista rebateu:
– Mas isto não é uma coisa que se pense durante o trabalho. O motorista só pensa em ganhar dinheiro para poder pagar a diária e levar algum troco para casa.
É verdade. Lógico que existem os momentos de tesão, da alquimia, onde tanto o homem quanto a mulher sentem uma atração e aí não se pode prever o que vai acontecer. Nunca se sabe das taras das mulheres em conquistar um motorista de táxi… E a garotada mineira, sempre visando o dinheiro, poderia, na calada da noite se aproveitar dos viados… Nos desejos dos viados…

Uma noite ruim, passageiros miseráveis, corridas pequenas. De repente cai uma chuva torrencial. Duas haitianas fazem sinal no Bayside e pedem para seguir o ônibus. Elas acabavam de perder o último ônibus da noite. Uma delas carregava as moedas na mão. Disseram que não tinham dinheiro e entraram correndo no banco da frente. Eu disse;
– Não tem problema. Duas jovens senhoras bonitas, numa noite chuvosa, é um prazer.
As haitianas carregavam um cheiro de gordura de cozinha insuportável.
A mais velha empurrou a mais nova em cima de mim. Ela abriu os dois botões da blusa e com os olhos fixos no ônibus que se distanciava, começou a esfregar os peitos duros no meu ombro como se fosse para pagar por este favor. Lembrei de um amigo que sempre me dizia: Tesão é ocasião. Não existe cor, cheiro, idade, hora… tesão é ocasião. Por alguns segundos esqueci do cheiro, da gordura, da chuva, do ônibus. Na primeira parada do ônibus elas agradeceram e sairam correndo do táxi.
Na volta para South Beach havia despertado um desejo de encontrar qualquer mulher. A partir daí, qualquer uma serviria. Estava me sentindo como as cadelas americanas embriagadas…
A chuva aumentou de repente. Parecia um dilúvio. Na esquina da rua 5 com a Washington uma mulher loura completamente molhada faz sinal e também entra no banco da frente. O vestido transparente aumentou o desejo. Ela estava embriagada e disse:
– Vamos subir a Collins.
Perguntei de onde era.
– Sou russa.
Comecei a contar sobre os meus amigos russos, que era padrinho de uma menina russa e bla bla bla. De repente a mulher apagou. No balanço do carro foi escorregando e dormiu no meu ombro. Começou a dizer coisas desconexas e a alisar a minha perna. Fiquei quietinho sem saber o que fazer. A esta altura, com a blusa transparente aquela mulher linda, dormindo no meu ombro, era como um sonho. Poderia fazer qualquer coisa… Levar para um hotel, qualquer coisa…. Perguntei mais uma vez para onde ia. Ela disse
-Vai subindo.
Entrei na rua 23, fui até o final, junto à praia e a deixei dormindo. Fiquei ali parado olhando ela dormir e pensando como as pessoas podem de repente se transformar em tarados, loucos. Quantas pessoas perdem a cabeça. A mulher parecia drogada. Eu não conhecia o tipo de droga. Não conheço êxtase… e se fosse heroína? Não sei, não conheço…
Com o tempo ela foi melhorando e pediu que a deixasse na esquina da rua 11 com a Collins, Voltei, ela pagou, me deu o telefone de sua casa e pediu que eu ligasse. Durante muito tempo carreguei o telefone para um caso de emergência. O tempo passou, perdi o telefone e nunca mais a vi.

UM SUJEITO SINGULAR

Com a desvalorização do dólar em janeiro de 1999, os negócios brasileiros de Miami afundaram. Dezenas de lojas fecharam as suas portas. Eram mais de 500 mil turistas por ano comprando todo tipo de mercadorias. Comum encontrar um adolescente brasileiro com 2, 3 mil dólares no bolso comprando o último modelo de rádio, tênis, video cassete, joguinhos eletrônicos e um montão de porcarias..
Os mineiros que chegaram nesta última década e que não foram trabalhar em Deerfield ou Pompano Beach, viraram taxistas. Hoje estão se formando diversas máfias de motoristas brasileiros em Miami Beach. Com a facilidade dos celulares e do idioma português (se existir gíria então, ninguém entende) criam-se forças de trabalho das mais distintas.
No meu caso foram muitas as gravações de conversas. Eu levava um pequeno Sony no bolso da camisa. E no horário de 4 tarde às 4 da manhã, muita história rolou…
Parei no ponto da Lincoln Road e passa a Vera. Tinha um sorriso que encantava os passageiros. Era corajosa, dominava os assuntos com os passageiros e ainda levou muitos parentes para trabalhar na praça. Por segurança havia escolhido o aeroporto como ponto de partida.
– E aí Vera? Como está o movimento?
– Tá busy, e eu estou cansada.
– Sabe Vera, este trabalho de motorista de táxi embrutece um pouco as pessoas. Estou perdendo a ternura…ando uma pilha de nervos.
O rádio chamou e a Vera saiu correndo. Não deu tempo para saber o que ela pensava a respeito.
Entrei no Eckerd Drugs, para comprar alguma coisa para a minha filha. Saí e um jovem louro se aproximou de mim e disse:
– Brasileiro?
– Tá na cara não é?
– Como é o seu nome?
– Chico Moura.
– Não, eu não acredito. Estou há anos procurando por você. Você me coloca no jornal um anúncio gratuito do AA. Sabe quem eu sou?
– Não tenho a mínima idéia.
– Sou o Frank.
– Ah, já sei. Você saiu do AA?
– Não, só hoje que estou tomando uma cervejinha. Amanhã eu volto.
– Você se importa se eu gravar o nosso papo? Estou fazendo umas experiências com este gravador.
O homem estava completamente bêbado, mas controlado. Os que aguentam mais a bebida conseguem disfarçar melhor e sofrem mais. E ele começa a falar;
– Não, absolutamente. É para gravar mesmo porque por Deus do Céu, você nunca mais vai ter esta para o resto da sua vida.
– Por que?
– Primeiro porque eu sou um sujeito singular, segundo porque sou do tipo tropical, terceiro tenho muitos anos de Ipanema, como você….
Neste momento passa uma japonesa e pergunta se o táxi está livre.
Ele grita: ai, ai ai como eu queria estar neste táxi.
– Depois a gente se fala.
– Chico faz um favor: Me empresta cinco dólares. Mais tarde eu te pago.
– Numa boa.
– Obrigado, você sabe, sou um sujeito singular.
A japonesa não ia para muito longe. Preferia ter ficado para saber o resto da conversa do Frank e saber quantas cervejas ele havia conseguido comprar com 5 dólares

GAYS, FORTES E BONITOS

Mais uma vez começava a noite em South Beach. Bandos de gays aparentemente saudáveis, todos vestindo branco para mais uma reunião da White Party. Desta vez foi no Convention Center. Criaram uma discoteca garantindo um bom movimento entre as 9 e 11 horas da noite. A enorme fila de táxis na porta do Convention Center, anunciava pequenas corridas, mas boas gorjetas. Os gays entravam eufóricos nos carros contando as suas experiências, o novo namorado, quem dançou com quem, fulano estava linda!, beltrano estava mais sexy do que nunca. Homens enormes, fortíssimos, se beijando na boca, com longos carinhos.
Lembrei-me dos tempos de adolescente no Rio de Janeiro onde os amigos da rua saiam de Ipanema à pé, em direção a Copacabana, procurando os viados para dar porrada, entrar no apartamento, amarrar a vítima, roubar tudo e sair correndo. Eu sempre achei aquilo uma tremenda barbárie. Naquela época não se podia defender os pobres viados. Seria banido da turma para sempre. Acho que por estas atitudes dos anos 60/70, os gays de San Francisco iniciaram uma campanha para modificar a sua imagem. Nos últimos 20 anos, gays de todo o mundo, mostram um aspecto saudável, com cabelos curtos, bigodes ao estilo policial e muitos músculos desenvolvidos nas academias. Em South Beach não é diferente. Algumas academias ficam abertas 24 horas. Muitos, que pela natural compleição física não conseguem “mostrar” o seu lado macho, recorrem a injeções e vitaminas especiais que desenvolvem alguns músculos do corpo. Às vezes os “bombados” com injeções, ficam com braços enormes e pernas finíssimas.
À porta do Twist, dois garotos entram e pedem para esperar pelo terceiro amigo. O Twist é um bar/discoteca gay. Um dos mais famosos em South Beach. O mais velho dá um escândalo porque o jovem (devia ter uns 18 anos) na saída ficou conversando com um senhor na porta da boite. Começa uma gritaria, cenas de ciúme…unhada na cara, choro, chiliques…
Meu Deus do Céu, o que estou fazendo aqui? Podia estar em casa, com minha família….
– Você com aquele velho. Nunca mais quero ver a sua cara.
E começou a chorar.
– Para de cena. Só peguei o telefone dele. Ele era um tesão.
Quanto mais falava mais o viado chorava. Gritava no meu ouvido.
O motorista de táxi não pode interferir no que os passageiros fazem. Muitas vezes levei casais que chegavam ao orgasmo dentro do carro. Muitos esqueciam completamente onde estavam. As drogas são tão violentas que afastam a vergonha, o pudor e o respeito pelo ser humano.

A PERDA DA TERNURA

Lidar com drogados na noite é uma arte difícil. Se se perde o comando vira-se um marionete dentro do carro. No início, para agradar eu deixava que mudassem a estação de rádio, Qualquer um entrava e aumentava o volume ao máximo. Os passageiros do banco traseiro batiam nas janelas e gritavam. Eu sorria, com medo de não agradar.
O tempo foi passando e fui perdendo a ternura, fui me embrutecendo.
Um dia, 5 americanos entraram na Van. Todos gritando muito. O da frente, antes de dizer para onde ia, mudou a estação do rádio para a power 96, a preferida dos teenagers. Era uma mistura de tribo africana com um berro eletrônico. Lembrei-me do Marco Varella, um amigo do Brasil que fazia quatro coisas na vida: Lia dicionário, bebia underbergh, comia alho e escutava música clássica. No máximo uma bossa nova ou um blues. Se entrasse naquele inferno, enlouqueceria.
Até aí tudo bem. Todos os dias eu fazia tudo para agradar os loucos de South Beach.
Com um barulho ensurdecedor, um deles tira o boné de minha cabeça. Não falei nada. Parei o carro no acostamento, dei a volta, abri a porta da Van e tirei o boné da mão dele, mandando todo mundo sair. Os meus olhos começaram a girar e eu sabia que o meu momento de loucura chegara. Para se matar uma pessoa bastam três segundos. São os três segundos de loucura. E o momento havia chegado.
– Get a fuck out of here NOW! Out! Out!
Não matei ninguém. Os garotos ficaram mudos. Mesmo drogados ficaram com medo do meu rosto enlouquecido, da gota dágua que transbordou… O da frente pagou a corrida e fui embora.
Parei para pensar e descobri que o meu tempo de parar havia chegado.
Devolvi o carro e fui para casa.

A ENTREVISTA

Passado alguns dias voltei a trabalhar. Já podia ganhar (limpo) uns 200 dólares, numa sexta feira à noite em South Beach,. Se trabalhasse só nos finais de semana poderia ganhar uns 400/ 500 dólares. Nada mal para um trabalho independente, sem patrão, sem horário, dono do meu nariz. Só tinha que me controlar mais e deixar rolar.
Um dia o Raymundo Bittencourt veio do Brasil e me convidou para organizar um festival de bossa nova no Hotel Fountainebleau Hilton. Foi um sucesso. Eu fazia um programa de TV e passei o dia entrevistando a Leny Andrade, os Cariocas, Roberto Menescal….
Dia seguinte organizei com o Raymundo um petit comitê para uns 40 convidados. Na reunião de Bossa Nova, no elegante resturante Steak Masters de Coral Gables, reunimos, Vanda Sá, Pery Ribeiro, Antonio Adolfo, Os Cariocas, Leny Andrdae, Roberto Menescal e Carol Saboya (filha de Antonio Adolfo).
Na época eu tinha um cadilac novo. Parei o carro na porta do restaurante e entrei ao lado da Carol. A filha do Antonio Adolfo era uma cantora linda, com uma belísisma voz e muito simpática. Após pequena entrevista ela encantou a todos os presentes, entre eles, Flavio Carvalho (ex-diretor da Transbrasil), Bruno Borghini (ex gerente da Varig), Luis Oswaldo Leite (ex-presidente da Odebrecht Miami), Ronaldo Batalha (ex-NCL), Claudio Ribeiro, Ahide (já falecido), Luis Ernesto Gozzoli, Julio Queiros e outros…
Dois dias depois, com o programa já editado, volto ao táxi e o rádio me manda para um hotel em Miami Beach. Quem entra? Carol Saboya. Eu de óculos e boné, fiquei quietinho. Ela de cara foi dizendo:
– Eu te conheço de algum lugar.
Tirei o óculos e ela disse:
– Chico! O que você está fazendo aí? E o programa?
– O programa sai esta semana. Já está editado.
– Vamos para o aeroporto?
– Vamos.
Aí ela virou para o namorado americano e disse.
– Este é um jornalista amigo meu. Me entrevistou ante-ontem para um programa de TV que ele produz em Miami….
Não sei se o jovem entendeu direito aquela fantástica estória.
Ela virou para mim e querendo agradar falou:
– Eu também tenho um primo que já dirigiu táxi na Califórnia.
Eu entendia perfeitamente aquela situação. Era como encontrar o meu amigo Claudio Ribeiro. Ele havia feito uma cirurgia e retirou um rim. E eu, todas as vezes que o encontrava, falava:
– Tô com o fígado baleado, meu coração não tá batendo direito, estou com miocardiopatia hepática……..
Era uma forma de agradar, de dizer para o amigo que era solidário, que todos temos alguma doença, vamos todos morrer…
Levando a Carol para o aeroporto lembrei da Dilma Lóes e de seu curta metragem: “Quando os Criolos Dançam”. A Dilma escrevia para o meu jornal e um dia mostrou um documentário sobre racismo no Brasil.
O filme, entre outras passagens mostrava um professor de economia de uma Universidade Federal do Brasil, que havia sido convidado para um churrasco na casa de um colega de trabalho.
Ao estacionar o carro à porta da elegante casa no bairro da Joatinga (um dos lugares mais bonitos do Brasil), o professor negro, olha de longe para os convidados espantados e escuta nas palavras do proprietário da casa a seguinte introdução:
– Este é um amigo meu, Professor Titular de Economia da Universidade Federal, com pós graduação em São Paulo e PHD em Harvard….
O programa de TV ia bem não fosse a minha falta de experiência em lidar com os “ditos” profissionais que cobravam os olhos da cara por cada hora de edição. Fazer televisão é um saco sem fundo. Por mais que se tenha capital nunca se pára de gastar dinheiro. Os equipamentos são caros e os profissionais mais ainda.
A imagem da Carol Saboya ainda ficou algum tempo gravada nas fotografias publicadas no jornal que eu editava na época. Além do programa de TV e do táxi, ainda editava um jornal quinzenal.

ARGENTINA

Numa destas madrugadas, um casal entrou no meu táxi para uma corrida relativamente pequena. Corrida pequena, pouca conversa, pensei. Prefiro as mais longas. Lógico que não é pelo dinheiro, que sempre, será uma merreca. Mas pela oportunidade de se criar um diálogo e a necessidade de me informar.
Mas voltando ao casal, ela, uma argentina judia, me pergunta:
– Donde és? De Brasil? Que lindo! A mi me encanta la forma de hablar de los brasileiros. Quando escucho lo português, sinto un verdadero orgasmo.
Aí, o namorado americano diz:
– Mas ô Raquel, isto é uma falta de respeito para comigo.
– Non mi amor, és verdad. Pode ser qualquer brasileiro, branco, preto, magro, gordo, qualquer um, até um gay brasileiro se falar no meu ouvido eu me apaixono.
Foi uma corrida de uns três dólares – perdi uma boa oportunidade de diálogo..
A sonorização do nosso idioma é motivo de curiosidade entre os mais diversos povos do planeta. A primeira vez que ouvi um comentário a este respeito foi em New York, quando estava num elevador cheio de pessoas e eu conversava baixinho com o Munir, um colega de trabalho do Manufacturers Hanover. Uma senhora interrompeu e disse
– Mas que lingua fantástica é esta que vocês estão falando?
Esta paixão que o Brasil provoca, seja nos intercâmbios culturais, seja em projetos como o “Peace Corps”, estágios, congressos, seminários ou simplesmente no turismo, deveria ser mais bem aproveitada.
Um outro exemplo desta paixão encontrei em Miami na família Samour, do grupo S & A. Eu, que os acompanho há mais de 20 anos, sei do carinho que têm para com as coisas do Brasil. Paixão tão grande, que acreditando na economia e no futuro do nosso país, criaram uma distribuidora de produtos eletrônicos no Rio de Janeiro. Numa das entrevistas para o programa de televisão “Chico Moura na Madrugada”, no canal WLRN, canal 17, Tony Samour, um palestino nascido em Belém, declarou sempre acreditar no Brasil e na recuperação da estabilidade econômica..

ORDEM DE PRISÃO

O tempo foi passando e eu me acostumando ao novo trabalho. As horas de sono eram as mais variadas. Se eu fosse dormir às cinco da manhã, teria que acordar à uma. Impossível. O telefone, o barulho do lixeiro, o vizinho cortando grama, o gato miando opor costume, o mundo todo jogava contra. Porra, me deixem dormir….
O que começou como uma brincadeira, de repente virou uma necessidade. Os motoristas se acostumam a ganhar aquele dinheiro cash, sem horário pré-definido. Se quiser ganhar mais, trabalha-se mais.
Lógico que aí tem o outro lado da moeda, o dinheiro começa a faltar. Minha mulher continuava sem emprego. As contas aumentando. Os jogos das palavras no casamento, a falta de incentivo, o tesão acabando. Um dia passo em casa para jantar e como de costume, saio com uma frase qualquer do tipo; você devia buscar um trabalho melhor, aqui tá faltando tudo.. sei lá, qualquer coisa ruim…. Segui para o aeroporto. Esperei quase três horas pelo primeiro passageiro. Uma senhora educada, me pede para ir à um hotel em Miami Beach. Coloquei uma música clássica, suave. Nem alta nem baixa. No caminho viajei, voltei ao Brasil, lembrei da adolescência em Ipanema, a liberdade, o amor sempre presente, a boa música, os amigos, uma Ipanema que nunca mais voltaria… Estava meio triste, chateado com as palavras de casa. Ao chegar ao hotel nem notei que subira a rampa pela parte de trás. Pedi desculpas à passageira e ao porteiro, que veio logo gritando. Eu disse:
– Desculpe nem reparei na entrada.
Mal terminei ele gritou
– CALADO!
– Pelo amor de Deus, não fale assim comigo…
– EU JÁ DISSE: CALADO.
E fez um gesto como um fecho-eclair na boca.
Neste momento pedi desculpas mais uma vez à passageira e ela disse
– Não tem problema.
Saí do carro, tirei as malas do carro e disse:
– Além do mais é tarde, não tem carro nenhum por aqui.
Aí o porteiro e o valet parking vêm para cima de mim gritando:
– EU JÁ DISSE PARA FICAR CALADO!!!.
Neste momento esfrega o dedo no meu nariz.
A passageira ainda contava o dinheiro dentro do carro, quando aconteceu o momento maior da loucura. Foi somente um soco.
Os dentes rolaram pela rampa do hotel. Eu só vi depois, o sangue e a boca toda arrebentada.
A passageira pagou e entrou no hotel sem as malas. O porteiro voltou para para chamar a polícia. Eu não sabia o que fazer. Ainda esperei dentro do carro alguns segundos. Os dois vieram correndo e chutaram o carro. Saí dirigindo e liguei para a empresa relatando o ocorrido.
– Não se preocupe. Nós controlamos o rádio e mesmo que eles tenham guardado o número do carro, nós te cobrimos.
Ainda voltei ao aeroporto para mais uma corrida, mas não consegui relaxar.
Quantos dentes quebrei? Isto é grave. Poderia ser um Felony? Será que dá cadeia?
Lembrei do Valdir da Barão. Nos anos sessenta existiam muitas turmas de rua…. brigas de rua. No Rio de Janeiro a turma do Leme, da Tijuca, da Miguel Lemos, do Méier, da Praça Sans Pena. A Turma da Barão, era da Rua Rua Barão da Torre, em Ipanema. O Valdir da Barão, era bom de briga… Mais ou menos na mesma época que saí do Brasil, no início dos anos 70, Valdir mudou-se para a Alemanha. Um dia me contou que em diversos países da Europa muita gente vivia de provocar os outros na rua para ganhar dinheiro. Por exemplo se um turista quisesse entrar num bar ou numa discoteca e se alguém lhe barrase a entrada, estaria provocando para levar o primeiro soco. Os processos eram violentos. Nos Estados Unidos, cometer fraude era mais violento do que traficar drogas e agressão nem pensar. É caso sério, dá cadeia.
Um milhão de pensamentos. Minha vida acabou. Por que fui me meter nesta história de táxi? If you play you pay. Você não queria sentir emoções fortes? Não achava que isto era um jardim de Infância? Lembrei do Ponam. Miami é um Jardim de Infância…
Fui para casa e não consegui dormir. A mão começou a inchar e a doer.
Dia seguinte, logo cedo, liguei para a companhia.
Parece que a polícia já está te procurando, disse o dispatcher.
– Mas você não disse que ia segurar a barra?
Era tudo mentira. Na hora do sufoco, Bye Bye.
Pensei em minha filha, O que vou dizer… O pai brigando na rua.. Que vergonha. Não tem perdão.
Antes do horário de expediente já estava na porta do Escritório Central do Motor Vehicle, onde se tira o hack license (táxis), controlado pelo departamento de trânsito.
Avisei à minha mulher que poderia ser preso a qualquer momento. Na América desde há muitos anos, aprendi que não vale a pena fugir. Aliás, não vale a pena fugir em lugar nenhum do mundo.
E se era para sentir emoção forte, nada poderia ser mais forte. A minha vida num táxi estava na corda bamba.
Ao chegar perguntei pelo chefe do departamento.
– Qual o assunto?
– É um assunto grave e pessoal, disse.
– OK. Você espera nesta sala.
Foram os dez minutos mais longos de minha vida. A mão ainda doendo e uma mistura de pena e remorso do pobre homem… com os dentes quebrados.
Mas ele me tratou como um cachorro. Um erro não justifica o outro. Mil pensamentos…
– Pode entrar.
Gelado, acompanhei o officer que me apontou uma cadeira.
Na sala, um monte de fotografias de família, filhos, esposa… Todos pretos. Já sei que é preto. No canto da mesa uma pequena escultura de madeira onde se lia: JESUS. Deve ser evangélico.
O Chefe, um preto evangélico haitiano entrou, me olhou e disse :
– Qual é o problema?
– Antes de mais nada quero dizer que os motoristas de táxi estão sempre errados. Portanto o que vou dizer agora, já é para o senhor pré julgar de que estou errado. Mas se me der uma chance eu gostaria de relatar o que aconteceu.
– Não estou entendendo nada do que você está dizendo. Mas uma coisa eu posso te garantir. Os motoristas de táxi não estão sempre errados. Eu próprio já fui um motorista de táxi. E sei exatamente o que cada um passa no dia a dia.
Mais uma vez a minha estrela, o meu anjo da guarda dando o ar de sua graça. Mais uma vez a presença de Deus. Sei lá…
Bem o caso é o seguinte, comecei dizendo meu nome, onde nasci, quantas horas trabalhava e ao começar a história ele disse, virando a tela do computador para mim.
– Você tem uma ordem de prisão.
Antes de eu falar qualquer assunto, só em dar o meu nome, ele já sabia do caso.
– Como ordem de prisão se ninguém sabe o que aconteceu?
– Este caso é grave porque tem a participação do gerente geral do hotel, que já ligou para um departamento federal….O primeiro conselho que posso te dar é preencher agora um depoimento.
E eu comecei a escrever:
Saí do aeroporto com uma pasageira com destino à Miami Beach. Chegando ao hotel o porteiro gritou comigo e eu pedi que ele não gritasse. Ele me mandou ficar calado. Eu pedi desculpas e ele veio me agredir com o dedo na minha cara. Fiquei com medo e o empurrei. Entrei no carro e fui embora.
Neste momento o negão levantou, me olhou nos olhos e perguntou:
– Você é homem… Diga-me a verdade: Você empurrou, ou quebrou-lhe os dentes ?
– Eu quebrei-lhe os dentes.
Minha cabeça já estava na prisão. Sem dinheiro para pagar a qualquer advogado… sem dinheiro para nada. Fim de carreira. Não adiantou viver uma vida honesta, ter recebido a chave da cidade de Miami, medalha de mérito legislativo (em Fortaleza), troféus, títulos… nada. Não adiantou ter criado o primeiro jornal brasileiro da Flórida, o primeiro programa de rádio de Orlando, o primeiro programa de TV em português do estado…. Nada….Minha vida acabou por um soco na cara de um porteiro que me provocou, me tratou como um cachorro, como um mulambo qualquer.
E eu ainda repeti:
– Não sei se foram dois ou três dentes. Mas foi uma reação completamnente humana. Acho que qualquer pessoa com sangue nas veias faria a mesma coisa.
O negão me estendeu a mão e disse:
-Você é um bom homem. Procure um advogado.
– Devo ir à polícia?
– Não. Espere que eles vão te buscar em casa.
– Posso trabalhar ?
– Se eles forem em sua casa te buscar e você não estiver, vão deixar notificação. Mas a primeira coisa que deve fazer é procurar um bom advogado.
De lá segui para downtown. Lógico que no restaurante Las Palmas seria um prato cheio para as fofocas.
– Valdir, você não tem idéia do que me aconteceu… e comecei a falar.
Com a roda na esquina aumentando, o medo cada vez maior. Cada um dava o seu palpite. Vai gastar pelo menos uns 20 mil dólares disse o primeiro…
O paulista Valdir Coelho, na época proprietário do bar, já tinha sido motorista de táxi e tinha muita esperiência de rua. É o que se chama nos Estados Unidos de Street Wise
Mas eu não deveria contar a ninguém. Isto não é bonito. É feio brigar na rua.
Saí dali voando para o advogado.
A Cida me recebeu sempre com aquele maravilhoso sorriso. Naquela época trabalhava para o escritório de advocacia do Dr. Mauro Santos, filho de Jair Santos, um dos precurssores do turismo brasileiro em Miami. Jair tinha sido meu cliente no jornal O Globo e era um bom amigo. O filho poderia me ajudar.
Cida Ignácio – que mais tarde viria a falecer – tinha sido durante anos uma grande amiga e companheira. Foi proprietária do mais famoso restaurante de Miami, o Brazilian South Restaurant, ponto de encontro de todos os brasileiros que viveram o início da criação desta comunidade. Só de fatos e curiosidades deste restaurante seria necessário escrever mais alguns livros
Cida, após um pesado tratamento contra o câncer trabalhava para o Dr. Mauro Santos.
– Pode entrar, chiquinho meu amor.
Ela sempre me chamava de chiquinho meu amor.
Mauro pergunta:
– Qual o problema?
Fui direto ao assunto. Contei nos mínimos detalhes.
– Em primeiro lugar quero dizer que existe muita chance de tudo isto acabar em pizza. Mas se acontecer qualquer problema, vai te custar entre 5 e 10 mil dólares.
Me senti mais aliviado. Já tinha um advogado. Mesmo sabendo que não poderia pagar. E que havia a possibilidade de acabar em pizza.
Mas não, ele estava errado, pensei. Como pode acabar em pizza?
Alguns anos depois conheci um português em Fortaleza. Ele veio passar uns dias em Miami e participou do processo da compra de um carro.
O português entendia de tudo. Era um pesquisador. O tempo que eu passava pescando, ele andava pela cidade a procura de manuais. “Como instalar uma bomba dágua num jet ski” ou “Como instalar um ar condicionado numa motocicleta”, sei lá, qualquer coisa que pudesse engrandecer a sua cabeça. Passei a admirar este português. Quando comprei o carro ele me disse:
– É uma boa compra.
No dia que fui buscar nada funcionava. O ar condicionado parou, na roda um barulhão enorme.
Levei o carro para o Gaúcho, um mecânico que anunciava no meu jornal.
– Tem problema de válvula, transmissão e o calço do motor está quebrado.
Saí arrasado. Vou gastar mais de mil dólares numa compra mal feita.
Peguei o português João Barata no Hotel Paradise Inn e disse:
– O carro está uma merda.
– Ó chico deixe pra lá, não vês que o carro está bom, o pá?
– Como bom ???
E comecei a falar dos problemas. Nem escutava o que ele me dizia. Ele levantou a voz.
– O problema do ar condiconado é este fio que está solto, a válvula é falta de óleo, o calço do motor é um trabalho simples na junta do motor, a tansmissão está boa. Este barulho é do óleo…
E foi tirando todas as minhas dúvidas. Voltei ao mecânico e por 100 dólares o carro ficou quase novo. Tá vendo este barulho? Vai sumir daqui a pouco. Tá vendo isto, eu não te disse…. e continuou. Na vida não devemos nos apavorar com os problemas que estão à nossa frente. Temos que resolver o problema. A inteligência humana está na capacidade de se resolver o problema que está à sua frente. A nossa mente é muito fértil. Em se tratando de carros, nem sempre estes barulhos representam grandes problemas. Os mecânicos sabem disto. Mas os clientes é que gostam de ser em enganados. Os clientes é que criam os problemas.
No caso das palavras do advogado Mauro Santos, como era possível dizer que tudo acabaria em pizza? eu quebrei os dentes de um porteiro de hotel.
Ele ainda me disse;
– Provavelmente o porteiro é ilegal…
Fui para casa, peguei o táxi e saí sentindo de novo o frio na espinha, o prazer da navalha, A MINHA VIDA NUM TÁXI , tinha virado o APOCALYPSE NOW.
Passados 10 dias, procurei no centro de Miami o Dudu. Era o único policial brasileiro da cidade e provavelmente poderia me ajudar,
– Chico, vai pra casa. Eu duvido que isto chegue a algum lugar. Você acha que um juiz de Miami Beach vai se preocupar que um motorista de táxi deu um soco num porteiro ilegal? Lá no meu departamento vi milhões de casos iguais ao seu.
– Como você sabe que o porteiro é ilegal?
– E quem não é nesta cidade?
– Você é cidadão, tem a chave da cidade. Tem história para contar. Ele deve ser um foragido qualquer que tentou te bater e você se defendeu. Vai pra casa. Eu aposto com você que não vai acontecer nada.
Nem as palavras do policial Dudu me convenceram. Pensei em ligar para o Alvino e perguntar quem era o seu motorista de plantão em frente ao hotel. Depois desisti. Ele serviria de testemunha para o pessoal do hotel é lógico. Teria mais passageiros…
O tempo passou.
Um dia estava parado num sinal vermelho. Do outro lado uma moto da polícia. De repente avanço o semáforo vermelho.
O policial sem entender, deu a volta e me parou.
– Você está louco?
– Não, é que estou trabalhando muito e estou cansado. Mas você pode me levar logo preso e acabar com este pesadelo.
– Mas que pesadelo? Onde está a sua carteira?
– Não tenho. Perdi. Acho que tenho uma cópia na mala do carro. Eu carregava um brief case (mala 007) no trunk com alguns documentos, jornais etc…
Quando fui abrir a mala do táxi, o policial dá uns dois ou três passos atrás e fica em posição de ataque.
É agora que vou ser preso…
Ele pega a cópia de minha carteira e manda que eu fique parado de frente, para o farol da moto – na minha cara – Era ao lado da Lincoln Road, 10 horas da noite: showtime.
De repente soa da moto um alto falante com a resposta do meu status: ….Motorista é safe driver, sem multa nos útimos dez anos…
E a ordem de prisão? Onde foi parar?
O policial voltou com a carteira na mão e disse:
– Se você estiver muito cansado, é melhor ir para casa. Não vou te multar desta vez. Eu compreendo estas situações.
Não acreditei. Saí dalí quase chorando de felicidade, agradecendo a Deus por estar livre.
Fui para casa e no dia seguinte resolvi descobrir o que havia acontecido com a tal ordem de prisão.
O porteiro foi despedido do hotel por temperamento violento. Caso dismissed – encerrado –
Mais uma vez a minha estrela brilhara. Mais uma vez fui salvo pelo gongo.

CHARUTOS E LICORES

Um dia toca o telefone celular:
– Chico tá fazendo alguma coisa?
– Não, tô available.
– Quer vir à minha casa?
– Lógico.
Eu não poderia dizer que estava dirigindo um táxi. Fui para a Brickell, dei o meu nome para o porteiro, o portão se abriu e estacionei o táxi na única vaga de convidados do The Palace, um dos mais luxuosos edifícios de Miami.
No elevador fui pensando: Será que ele está com uma corrente ou um colar?
Ao chegar no seu andar, ele me atendeu sem colocar o pé no corredor. Afinal era uma prisão domiciliar. De cara não pude identificar o chip que controlava os seus movimentos. Vestia um roupão super-chique com um emblema, um brasão bordado no bolso esquerdo. A cabeleira sempre alinhada, com gel. Me recebeu com muita educação. De cara foi perguntando;
– Um cohiba?
– Agora não. Tenho aqui um gravador. Posso gravar?
– Agora não.
E começou a falar…. A minha mão coçava para ligar o gravador. Mas havia dado a minha palavra.
– Quando chegar a hora prometo que vou te dar exclusividade nesta entrevista. Agora só quero desabafar.
Após pagar a fiança, Oscar de Barros esperava em prisão domiciliar o julgamento de um processo de fraude, envolvimento com lavagem de dinheiro e outras acusações… Ele, culpado ou não, seria crucificado pelo governo americano por ter falsificado um documento que envolvia o Presidente da República do Brasil. Me garantiu ser verdadeiro.
– O documento verdadeiro existe. O que nós vendemos foi forjado. Mas não fui eu que forjou….
Foi assim que Oscar de Barros começou a me contar toda a história do Dossiê Cayman e do caso de suborno e lobby que intermediou para a Fidelity (uma das maiores financeiras americanas) em São Paulo, os cheques recebidos, a integridade em não dedurar os seus clientes, a história do Presidente Fernando Henrique Cardoso no exterior, as pessoas de Miami que estavam envolvidas na fraude da concorrência da instalação dos cabos óticos em São Paulo. Contou-me tudo. Quando começou a falar das coisas mais pessoais, mudamos para a varanda onde tomamos alguns licores de café, intercalados por belos charutos cubanos. Lá do alto, de vez em quando eu olhava o táxi no estacionamento para evitar um possível reboque…..
Na conversa ele me disse que provavelmente alguém, poderia estar – no prédio ao lado – com um microfone direcional gravando a nossa conversa. Não me importei. Como um motorista de táxi poderia estar implicado com a Fidelity, a maior financeira americana, ou com o Paulo Maluf, Pastor Caio Fábio, Jamil Degan, Fernando Collor???
Uma semana depois me ligou, pedindo que eu servisse de testemunha, afirmando conhecê-lo há mais de 15 anos, que era boa pessoa, etc. Eu até iria, se não fosse a oferta do “depois a gente conversa”. Além do mais ainda existia a minha própria ordem de prisão, por ter agredido um porteiro de hotel….

ROSE MAX

Aos domingos eu costumava parar no ponto de táxi embaixo do Van Dyke Cafe, na Lincoln Road e escutar a belíssima voz da cantora Rose Max e o violão de Ramatis. Eram os dois cariocas que melhor interpretavam a MPB em Miami. Não mexiam com drogas, eram responsáveis e a cada fase musical melhoravam o seu repertório. Era um momento de muita alegria, de paz e de boas lembranças, aquela parada na esquina da Jefferson Street com a Lincoln Road. As janelas do restaurante sempre abertas facilitavam o show de graça para os pedrestres. Com a música acabando eu sabia que teria alguns passageiros brasileiros. Mas a brincadeira havia acabado, fechei o jornal, parei com o programa de TV. Agora era 100% motorista de táxi e a história rolava:
– Qual é problema do Chico ? Será que é droga?
– Eu acho que é esta ligação que ele tem com a noite… Ele gosta da noite…Uma pessoa tão conhecida, com tantos valores, dirigindo táxi…
– Será que é problema de bebida?
Daquele momento em diante tudo era folclore.
Num final de tarde, na mesma Lincoln Road encontrei o João Pereira (João Parafuso) que corria apaixonado em direção a uma paulista endinheirada, que morava na Brickell e mostrava a Lincoln Road para uma amiga. Ela havia chegado de São Paulo naquela manhã e marcaram o encontro num restaurante caro. Ele disse correndo:
– Pára o carro aí e vamos jantar, vamos jantar, vamos jantar – repetiu. Eu pago tudo.
Era bem a característica do Joãozinho. Sempre queria agradar aos amigos, Embora mineiro, sempre corria para ser o primeiro a pagar.
– Não, já jantei.
– Tô com duas mulheres. Vamos lá, vamos lá..
As mulheres lindas, bem vestidas, cheirosas, e ligadas. A cada cinco minutos iam ao banheiro e voltavam cada vez mais ligadas.
A que havia recém chegado de São Paulo disse:
– Hoje você vai ficar com a gente. A gente te paga a diária.
Não fiquei chateado. Achei engraçado. E fiquei com pena. Eu estava numa outra onda. Cada onda é uma onda. Lembrei de novo do Gerson Delano, uma pessoa que curtia uma eterna onda sem precisar mais de qualquer droga. Uma pessoa de personalidade forte, sem medo de nada (pelo menos nunca demonstrou). Gerson curtiu com tudo e com todos na cidade de Miami. Era meio para-normal. Sabia de tudo o que acontecia sem estar presente. Uma pena que passou do ponto de equilíbrio e a coordenação motora ficara difícil. Se bebesse um pouco, então, esquece… os braços iam para a cucuia. Lembrava o João Resende, ex-adido cultural do Brasil em New York, que deixava um rastro de destruição pela noite, assim como os amigos de Ipanema; Cabelinho, Roniquito e outros…. Em Miami, não havia copo na mesa que resistisse aos choques elétricos de Gerson Delano, era vidro quebrado para todo lado. Durante muito tempo foi o meu personagem favorito. Numa cidade completamente aculturada, com valores distorcidos, com uma sociedade heterogênea, chata, rococó e como dizia Gerson, uma verdadeira badalhoça, quem era aquela maluca para me pagar a diária. Qual o meu preço?
Na saída eu disse:
– Hoje o meu preço é muito alto.
Voltei para o táxi pensando naqueles maravilhosos seios, olhos amendoados e o cheiro… como eram cheirosas, bonitas e gostosas….

BILL COSBY

De novo no aeroporto, mais tranquilo, voltei às minhas tradicionais conversas com os passageiros.
– E o Sr. vem de onde?
– De New York.
– E trabalha com quê?
– Em qual vida?
– Como assim?
– É que eu tenho vidas diferentes. Neste momento trabalho para 6 pessoas. Mas em outras vidas, já fui engenheiro, piloto de jatos, economista, professor de informática e ainda estive na guerra do vietnam como piloto de helicópteros. Hoje dou assessoria ao Bill Cosby, à Madonna e continuou dizendo nomes de pessoas famosas… Atendo às suas necessidades junto a parte de informática. Sou um espécie de anjo da guarda destes artistas. Onde estou eles me localizam e dou uma assessoria.
– E estes sacos de golfe? Como é que funciona, você vai jogar e o Bill Cosby precisa de uma informação sobre a sua impressora que quebrou. Como ele te localiza?
– Estou conectado 24 horas via internet e celular. O tempo vai mostrando como as coisas funcionam.
Comecei a sentir uma mistura de nervosismo e prazer…..Eu não poderia deixar em branco este momento. Tinha de falar sobre os filmes “The Little Big Man”, “The Gambler”, “The Razor’s Edge” e “Bread & Chocolate, sobre os jornais que criei, as instabilidades emocionais, as viagens, os 25 países que conheci, a necessidade de viver vidas diferentes. Tinha que falar sobre as tatuagens da alma, as que realmente marcam a vida do ser humano. A falta de paciência nas coisas, os casamentos… Era muita história para pouco tempo.
Mas tudo o que havia feito não era nada, comparado aquele fantástico engenheiro que vivia a vida como eu achava que ela deveria ser curtida.
Ao chegar à porta do Hotel Fontainebleu ele disse:
– Encosta aí ao lado. Gostei de você e quero te dizer umas coisas.
O homem começou a falar e esqueci completamente do tempo. Ficamos mais de meia hora conversando. Falei da idéia de escrever um livro.
Ao se despedir:
– O maior asset de sua vida está na sua cabeça! Nunca se esqueça disto. O livro tem o seu tempo certo. Good Luck. “TAUAGENS DA ALMA” é um bom título. Checa para ver se não existe um nome igual.
Voltei para o aeroporto alimentado espiritualmente por um engenheiro de informática que viajava pelo mundo, com um aspecto saudável, pescava na Costa Rica, jogava golfe em Miami, tênis em New York e ainda faturava 500 mil dólares por ano.

OH! CANADÁ

Era muito raro passar em casa para jantar. Se por acaso estivesse passando pelo meu bairro até poderia dar uma parada rápida.
E foi o que aconteceu no dia 6 de dezembro de 2000. Às 8:30 da noite aproveitei para jantar. Ao abrir a porta de casa, minha filha de 8 anos parada, chorando e me olhando, cobrando um choro qualquer. Existem cenas na vida de cada um de nós, que marcam mais do que as tatuagens do corpo, são as tatuagens da alma. E aquela era uma delas.
– Quem foi? o papai?
– Como você sabe?
Corri ao telefone. Falei com metade da família. Minha irmã disse:
– Acho que não dá mais tempo. O enterro é amanhã às 3 da tarde. Ainda tem avião?
– Não, não dá mais tempo.
Um grande vazio. Meus pais estiveram algumas vezes em Miami. A sensação de perder um ente querido à distância é uma experiência dolorosa. Só nós, os imigrantes sabemos como é este sentimento. Talvez não seja tão doloroso quanto os que estão ao lado do caixão, olhando o corpo moribundo, frio. Aqui, à distância, lembramos dos momentos felizes, guardamos as boas lembranças. Quase nunca acompanhamos as doenças terminais, a luta que os mais próximos têm… o sofrimento prolongado – no Brasil. No caso de meu pai, foi como ele viveu e talvez, como uma benção, não sofreu. Foi rápido.
E agora, o que vou fazer? Volto para o táxi ou fico em casa? Tenho que pagar a diária. A situação financeira não está boa. Meu pai talvez desejasse que eu fosse trabalhar…
Numa mistura de choro, febre, frio, tremedeira e muitos sentimentos estranhos, voltei ao aeroporto. De lá esperei mais de duas horas pelo primeiro passageiro. Uma vez no aeroporto comecei a me punir. Será que não estou cometendo um pecado? Não deveria respeitar a morte de meu pai e ficar em casa, rezando por ele? Mil pensamentos. Voltei ao ano de 1991 quando convidei uns amigos para comemorar no restaurante Paesano’s de Miami Beach, os 77 anos de meu pai. Por casualidade o garçon era o cearense Alfredo Abreu, que mais tarde também seria motorista de táxi. Além de minha mãe e outras pessoas, o seu melhor amigo na América, Antonio Nina, presenteou meu pai com uma garrafa de uísque. No meio do jantar, Nina levantou-se alinhou as suíssas, limpou os óculos, pigarreou e disse:
– Sr. Moacyr, neste momento solene de seu aniversário, gostaria de presenteá-lo com uma garrafa de uísque que guardo comigo há mais de 30 anos. Esta garrafa sobreviveu a muitas tormentas, muitas mudanças. Gostaria de que o Senhor tomasse em pequenos goles, nos momentos mais especiais de sua vida.
Meu pai não perdeu tempo. Chamou o garçon e pediu um balde com gelo.
– Vamos brindar agora.
Pouco tempo depois, já com a garrafa vazia, Nina vira-se para o meu pai e diz:
– Sr. Moacyr este uísque era para o Sr. tomar nos melhores momentos de sua vida.
– Pois o melhor momento foi agora, com vocês, minha família e meus amigos.
Nina, como o primeiro funcionário brasileiro da Varig nos Estados Unidos, já estava aposentado da companhia aérea e além de manter uma coluna sobre culinária no jornal Florida Review, cultivava em sua casa, o hábito de cozinhar. Como um bom maranhense era chegado a uma mensagem oral. O seu pensamento era sempre discursivo.
No estacionamento do Aeroporto Internacional de Miami, cercado de motoristas haitianos discutindo (gritando) sobre qualquer coisa ininteligível, eu fazia da saudade, o meu filme.
Line 12, line 12 . Chegou a minha vez. Pensei em voltar para casa. No túnel do aeroporto, uns 5 passageiros com muita bagagem, esperavam por uma van.
Com os olhos vermelhos e numa mistura de soluço e melancolia, perguntei:
– Vieram do norte?
– Sim, do Canadá.
– São músicos?
– Sim. Vamos para o Brasil.
Ao meio de um soluço, pedi desculpas pelo meu estado…e expliquei que o meu pai acabara de falecer no Brasil.
Falamos sobre música. Sobre o irmão de meu pai, Carlos Augusto, o primeiro brasileiro a gravar o bolero Negue, de Adelino Moreira. Provavelmente eles nunca deveriam ter escutado sobre Carlos Augusto, que faleceu num desastre de automóvel, mas com certeza lembraram de Ava Gardner, a namorada de Carlos Augusto, o irmão de meu pai.
Num momento egoísta comecei a falar das preferências musicais de meu pai.
– Adorava a orquestra de Glenn Miller…
Depois de um grande silêncio um deles começa a assobiar uma música de Glenn Miller. De repente estávamos todos imitando a orquestra do maestro. Ao chegar ao hotel após muita insistência dos músicos, acabei aceitando os 50 dólares de gorjeta.
Definitivamente o povo canadense em nada se comparava com as pessoas do sul da Flórida…..

NO AEROPORTO

No estacionamento do aeroporto internacional de Miami, existia uma grande família. Mais de 80% dos motoristas eram haitianos. Os grupos se reuniam em bandos para discutir em patoá, política, tom tom macute, futebol, imigração e religião. Cada motorista esperava em média 2 horas para ser chamado. Cada um, sonhando com uma viagem para Ft. Lauderdale, Palm Beach, Boca Raton ou até mesmo Orlando… Nestas duas horas a maioria se reunia num galpão que oferecia duas televisões, um bar/restaurante servindo comidas cubanas, cafés, pamonhas, mesas compridas, onde o jogo era a principal atividade. Os gritos e o som ensurdecedor dos dominós nas mesas. O baralho, o jogo à dinheiro. O pôquer podia chegar a 50 dólares o pingo. Muitas gente viciada.
Como podia-se pagar 50,60 dólares, por um turno de 12 horas, mais uns 20 de gazolina, mais as despesas diárias, e ainda se gastar no jogo e nas drogas?
A droga era a maconha. Não havia idade. Podia-se encontrar um velho gay barrigudo, fumando grandes cigarros, um jovem brasileiro magérrimo, agitado, um senhor cubano de uns 65 anos, todos, todos os dias com um cigarro de maconha…. Como podem dirigir? Será que os passageiros não notam? E o cheiro? Não fica cheiro no carro? E a polícia, não vê nada? ou finge que não vê?
Muitos preferiam dormir por duas horas no aeroporto, esperar a sua vez, fazer uma corrida, voltar ao estacionamento do aeroporto, dormir mais duas horas e assim sucessivamente até à noite, onde iam para South Beach. Na madrugada, muitos motoristas cheiravam cocaína e saíam para roubar os bêbados na noite. Na onda de ajudar o passageiro a entrar ou a sair do carro, a mão no bolso e as longas voltas.
O aeroporto era povoado por uns dois ou três gays, uns 5 americanos, dois ou três russos, 10 argentinos, 15 paquistaneses ou indianos, 20 brasileiros, 100 cubanos e uns 400 haitianos
Entre os brasileiros existiam umas 3 ou 4 mulheres. A Grace, uma paraense matreira, guardava os sinais de beleza na juventude. Já tinha sido de tudo um pouco; farmacêutica em São Paulo, dona de loja em Miami e em Brasília, comerciante em Manaus. Era a minha versão feminina do filme “Little Big Man”.
Gostava muito de conversar com a Grace. Muitas vezes nem precisava conversar… já sabia o que ela ia dizer…. Me contava de suas aventuras amorosas do passado, suas desilusões. Tinha grande experiência na vida e para todos os problemas encontrava uma solução. Principalmente para os problemas de saúde. Como amazonense conhecia as receitas caseiras para a cura de pedra nos rins, dor de cabeça, problema de coluna. Sabia tudo….Era uma mulher prática e muito interessante. Após dois casamentos, filhos e netos criados, vivia num pequeno mas confortável apartamento com um cubano – que também era motorista de táxi. No estacionamento do aeroporto quase não se falavam. Se comunicavam pelo celular. Ela tinha a sua turma e ele a dele.
Todas as vezes que eu conversava com a Grace lembrava da riqueza da Amazônia. Não era só o petróleo, a castanha, o ouro, a oxigenação da floresta. Era principalmente, o interesse dos laboratórios americanos, ingleses. A Amazônia era a origem da vida… graças aquela história de país do futuro, gigante adormecido etc, o Brasil ficou meio parado em seu desenvolvimento industrial – graças a Deus- A amazônia é o único lugar no mundo que guarda os mistérios da sobrevivência do ser humano.
Além da Grace, tinha a Vera com lindos olhos verdes, cabelos negros e um balanço de corpo sexy. Era uma mineira super simpática com os passageiros. Ria muito e dominava as conversas. Os gays adoravam conversar com a Vera. Ela dava um nó na cabeça dos homens que sempre a recompensavam com altas gorjetas. Era trabalhadeira e esperta no trânsito. Durante muito tempo os brasileiros (sempre gozadores) alimentaram na cabeça do Jajá que a Vera estaria disposta a namorar com ele. Jajá passou a vestir a sua melhor roupa. Chapéu de boiadeiro, botas e camisas de cow boy. Vivia perfumado e de cabelos penteados…
A Silvia era uma gaúcha bonita, casada com um uruguaio (também motorista). Quase não falava com os outros motoristas. Era uma incógnita. Os motoristas mineiros que não a conheciam diziam que era “metida a besta”. A antipatia poderia ser uma espécie de auto-defesa.
No aeroporto podia-se encontrar diariamente, mais ou menos na mesma hora, os tradicionais motoristas, os que trabalhavam sete dias por semana – sempre no mesmo lugar. Haviam os que saíam para procurar novos empregos e sempre acabavam voltando. E ainda os turistas que aguentavam um ou dois dias e depois sumiam. Mas todos com a mesma característica: a enorme barriga.

JAJÁ

O brasileiro Jajá foi talvez naquela fase, um dos tipos mais interessantes que conheci. Era um mineiro de boa índole, verdadeiro. As suas histórias viraram folclore no aeroporto.
Ele veio de uma pequena cidade perto de Governador Valadares. Lá deixara uma namorada onde muito raramente falava ao telefone. Como não conhecia bem a cidade e o inglês era zero, ficava sem entender para onde deveria ir.
Uma das primeiras histórias que escutei sobre o Jajá:
Uma passageira entrou no taxi e pediu Coral Way, em Coral Gables e deu o endereço. O Jajá rodou, rodou e não encontrou a Coral Way. De repente dá uma bronca na passageira:
– Minha senhora a senhora. tem que se definir: Ou a senhora vai para Coral Way ou para Coral Gables.
– Mas a Rua Coral Way fica em Coral Gables.
– Não adianta a senhora. querer me enganar. Ou vai para Coral Gables ou para a Coral Way.
Passado algum tempo, retirou as malas do carro e disse que ela não precisava mais pagar.
A mulher deu um ataque:
– Como um motorista de táxi não sabe onde é a Coral Way?
E quanto mais ela falava menos ele entendia.
Foi aí que ele teve a brilhante idéia de colocar de novo as malas no carro, voltar ao aeroporto e perguntar a algum conhecido onde ficava a Coral Way. Passadas 2 horas, a passageira já de volta ao aeroporto sai nervosa procurando outro táxi. Ele danado da vida, diz:
– Eu vou deixar a senhora aqui. Mas para o próximo motorista que a senhora pegar tem que se decidir. Ou vai para a Coral Way ou para Coral Gables.
Mais duas horas de espera praguejando, volta ao estacionamento dizendo que as americanas eram todas doidas, que não sabiam para onde queriam ir.
Na semana seguinte entra no túnel do aeroporto. Sem sair, abre com um botão automático, o porta- malas do carro. O passageiro cubano põe as malas (Jajá deveria carregar as malas) no trunk e bate a porta do baú.
Com o barulho de porta fechada, ele arranca sem olhar para trás e sem perguntar nada. Quando já está na saída do aeroporto pergunta ao passageiro:
– Para onde vamos? Hey, tá surdo? para onde vamos?
Sem resposta, pára o táxi e procura pelo passageiro. “As malas estão aqui. Onde estará este homem?” Jajá volta ao tunel do aeroporto. A esta altura a confusão formada, o passageiro com os fiscais do aeroporto chamando mais carros de polícia. Jajá chega dando bronca em portunhol no passageiro:
– Como ustê saiu do carro sem eu mirar? Não faça isto que es perigoso.
– Mas como? Eu nem entrei. Você que saiu arrancando que nem um louco.
Muitas vezes Jajá faturava o dobro do que realmente a corrida valia. Sem conhecer a cidade e sem falar inglês, sem querer, ganhava mais. Na realidade Jajá não era desonesto. Foi favorecido pelo não conhecimento.
Quando trabalhou para a Brazil Taxi, Jajá recebeu uma mensagem que deveria ir pagar a taxa semanal na casa do Alvino. Se estivesse com o passageiro no carro, desviava a rota e ia pagar.
– O senhor me desculpe mas tenho um compromisso. Mas o senhor pode esperar no táxi.
E o relógio correndo… a corrida saía muito maior do que deveria. Um dia, já cansado de ser passado para trás pelos colegas de profissão (muita gente pedia dinheiro emprestado ao Jajá e não pagava) resolve voltar ao Brasil. Com os 20 mil dólares que havia guardado, sonhava criar um negócio em sua terra natal. Os 20 mil dólares eram fruto de uma vida sacrificada, muitas vezes dormindo no carro, tomando banho no aeroporto e trabalhando 24 horas, 7 dias por semana.
Todos os dias, onde ele estivesse era formada uma roda de pessoas para escutar as aventuras do Jajá. O momento de descontração no aeroporto, de alegria.
Passados alguns meses, Jajá volta a Miami para de novo, dirigir um táxi. Marcou a passagem para o dia 11 de setembro. Foram dois meses de sofrimento, sem passageiros, sem ganhar nada. O aeroporto fechou. A partir desta data, ninguém mais viajava de avião.
Como já tinha morado na “montanha” (em New York) resolveu voltar para Ellenville. Os tempos mudaram. A temporada ainda não havia começado. Aí, Jajá vai com o irmão (que era ilegal no país) num departamento do governo pedir emprego. Com cara de árabe, sem falar nada de inglês e com o irmão ilegal, se viu envolvido com o maior problema de sua vida. O irmão foi deportado e ele respondeu processo.
Voltou para Miami e continua no aeroporto…
Mineiro de Belo Horizonte, Jairo sabia da vida de muita gente. Lia todos os jornais brasileiros. Não aguentava ouvir falar no nome do pessoal da praia. Achava um absurdo ter de pagar para os porteiros dos hotéis. Jairo vivia uma vida solitária, num pequeno apartamento alugado na praia de Miami Beach. Era divorciado e tinha uma namorada em Fort Lauderdale que se encontrava uma vez por semana ou a cada 15 dias. Quando estava muito cansado tomava um ou dois cuba libres e capotava. O resto do tempo era para dirigir e juntar dinheiro. Na América, já havia trabalhado em diversas profissões, inclusive na “montanha”. Com os filhos criados e os imóveis garantidos no Brasil, vivia uma vida aparentemente tranquila. Levava para o táxi a experiência adquirida nos diferentes trabalhos que passou por mais de 30 anos na América.
Alguns irmãos do Alvino trocaram o aeroporto ou as empresas de brasileiros para formar um grupo em Bal Harbor. Dominavam a área e era difícil um estranho entrar naquele pedaço, anteriormente dominado pelos russos.
Taco era outro mineiro que ficou viciado no táxi. Os irmãos ganharam dinheiro na montanha e nos hotéis de Miami Beach. Taco era louro, grande, com uma enorme barriga. Comprou casa no Brasil, mandou a família para Minas Gerais e vivia para o trabalho. Um dia teve um problema no aeroporto. Telefonou para a polícia dizendo que o Jajá o ameaçara de morte. Quando a polícia chegou perguntou:
– Você o ameaçou de morte?
Quando o Jajá responde:
– Quem? Esse cara grande? Se ele vier pra cima de mim eu meto uma faca nele.
Com esta resposta Jajá ficou proibido de chegar perto do Taco e do aeroporto, pelo menos por uns três meses.
O Leo era um curitibano que só fazia três coisas na vida: dirigia táxi, fumava e jogava na lotto. Era o mais antigo profissional brasileiro da praça de Miami. O tipo de trabalho e o excesso de cigarro haviam tirado a sua ternura. Uma madrugada brigou com um motorista que jurou matá-lo. Passado algum tempo, num alley de Miami Beach, levou uma facada na barriga. Dois anos depois levou um tiro dentro do carro de um bandido que queria dinheiro para fumar crack. Um dia ganhou 5 mil dólares na lotto, foi para Curitiba, reencontrou a família e curtiu o dinheiro. Em três meses voltou para a praça e a vida continua.

AEROPORTO

Os motoristas de táxi podiam, nas duas ou três horas de espera, entrar no aeroporto, “passear” pelas lojas, jogar na loto, telefonar com tranquilidade, ler todos os jornais confortavelmente sentados no salão com ar condicionado, encontrar amigos e ainda curtir a voz do brasileiro Marco Figueredo, um cearense, ex-funcionário da Varig que através de seus conhecimentos, conseguiu um trabalho de locutor oficial do aeroporto Internacional de Miami. Era a nossa versão masculina da Iris Letieri. Os motoristas se misturavam com os passageiros e ninguém poderia identificá-los ou reclamar.
A grande maioria preferia ficar no salão de jogos do estacionamento, sentindo calor, jogando dominó e olhando a televisão. Escutar o som da televisão, só no dia da apuração dos votos para presidente, atentado de 11 de setembro, final de campeonato de futebol, beisebol ou basquete. Fora isso era um verdadeiro pandemônio.
Entre os motoristas brasileiros podia-se encontrar entre os mais diferentes tipos, um mineiro trabalhador, um gaúcho organizado do tipo arrumadinho, com família bem constituída e bons equipamentos eletrônicos, um paulista boa gente… a maioria ilegal. Não encontravam emprego e só no táxi poderiam se esconder. Com uma carteira de motorista, uma rack licence (licença de taxista) válida, podia-se trabalhar o resto da vida sem qualquer suspeita dos oficiais da imigração. Mais tarde, após o 11 de setembro a coisa ficou durante algum tempo preta. Mas como sempre existiu o jeitinho brasileiro, as carteiras falsas começaram a aparecer.
A grande família dos motoristas de táxi do aeroporto era unida. As poucas brigas eram resolvidas na hora: um – dois – três… Os mais experientes sabiam que nunca se devia chamar a polícia. Um dia no túnel um cubano fechou um indiano.. Ele saiu, deu um soco na cara do cubano, O cubano saiu e quebrou o nariz do indiano. Cada um entrou no seu carro e sangrando, seguiram viagem. Ninguém se meteu….
Existia uma coisa em comum, o sofrimento das horas, a paciência, o costume e a fofoca. Em pouco tempo todo mundo sabia da vida de todo mundo. A motorista argentina (casada com um americano) que namorava um uruguaio (casado) dentro do carro. Dormiam juntos, principalmente nos dias de chuva. Era bonito ver aquele amor silencioso, escondido… A americana educada, mas mostrando os resquícios do vício, uma ex-drogada que encontrou a salvação no táxi. Os mineiros que também trabalhavam para as empresas piratas da praia, mas que davam as suas mordidas no aeroporto. O velho americano, veterano de guerra, com sua enorme bandeira, era o representante de uma minoria, mas cobrando respeito em sua terra natal. Os leitores da bíblia, os que faziam do aeroporto o seu hotel, levando travesseiros, escova de dentes, duas horas de grandes roncos de barrigudos novos e velhos, televisões portáteis, os músicos que afinavam os seus metais (pistons e saxofones), os teclados evangélicos, os violões dedilhados por negros haitianos entoando velhas canções francesas, os vendedores ilegais de comidas (quentinhas), que de repente abriam a mala de seus carros, virando num verdadeiro restaurante… os vendedores de capas, casacos de couro falsificados, agendas eletrônicas, capas para celulares, e até o nosso famoso amendoim (em espanhol quer dizer maniz) torrado em saquinho. – Todos os dias um dos motoristas, chefe de família, pai de oito crianças, saia pelo meio dos carros vendendo amendoim e gritando maniscero… maniscero…

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